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Sobre a pretendida neutralidade nas ciências sociais e a historiografia

10/25/2023

É o espaço acadêmico, como alguns pretendem, imune às ideologias e, por tanto, o único que permite um conhecimento rigoroso?

Por Ronald León Núñez

Para muitos acadêmicos que estudam a guerra contra o Paraguai é habitual assegurar que, ao menos desde a última década do século passado, se produziu uma “renovação” não somente no enfoque da questão, mas na historiografia como disciplina. Os historiadores mais renomados decidiram batizar o produto dessa mudança de paradigma como “Nova Historiografia” sobre esse conflito ou, em termos mais amplos, sobre o decorrer do Cone Sul no século XIX.

O propósito deste artigo não é desenvolver um debate sobre a interpretação dos fatos que propõe essa corrente –que na realidade tem pouco de “nova” e muito de reformulação da velha narrativa liberal–. Mas sobre seus critérios metodológicos.

Seus representantes asseguram haver escrito uma história “objetiva” e “imparcial”, embasada estritamente em “fatos” comprovados “empiricamente” por meio de documentos, sem “paixões” nem ideologias. O resultado: “uma análise mais objetiva da Guerra do Paraguai, mais além de simplificações ou deformações […]”, segundo o historiador Francisco Doratioto (1).

A proposta de uma leitura “nova”, e, também, “neutra”, exerce uma compreensível atração. Entretanto, se aprofundamos mais, coloca uma série de interrogantes: Pode o pesquisador deixar “fora da sala” sua concepção de mundo ao estudar a história ou outra disciplina das ciências humanas? É possível a neutralidade científica neste campo? Seu principal objeto de estudo, a sociedade, não está imersa no curso do desenvolvimento histórico da mesma forma que o sujeito da pesquisa, o cientista social? Existe uma “verdade histórica” a ser alcançada? Se sim, qual é o melhor caminho para chegar a ela?

Em qualquer universidade, a maioria dos acadêmicos dirão que a neutralidade nas ciências sociais não somente é possível, mas uma condição necessária para alcançar a verdade objetiva –entendida como isenta de ideologias e, por tanto, pura-. Mas vale perguntar: o espaço acadêmico é imune às ideologias e, por tanto, é o único capaz de avançar no conhecimento científico com rigor?

Existem muitas abordagens metodológicas. Mas aqui nos deteremos brevemente em duas: o positivismo e o materialismo histórico-dialético.

O positivismo, que deriva do empirismo clássico, basicamente propõe que ciência natural e social são a mesma coisa. A sociedade, com seus males, estaria regida por leis naturais, invariáveis. Auguste Comte, em um ataque de franqueza, escreveu: “O positivismo tende poderosamente, por sua natureza, a consolidar a ordem pública, por meio do desenvolvimento racional de uma sabia resignação [… isto é] uma permanente disposição para suportar com constância e sem nenhuma esperança de compensação, qualquer que seja, os males inevitáveis que regem os diversos gêneros de fenômenos naturais, a partir de uma profunda convicção da inevitabilidade destas leis” (2).

Como o estudo da sociedade seria equivalente ao da química, a física, a astronomia ou a medicina, para os positivistas a metodologia mais adequada para conhecer a vida social é a mesma que vale para a vida natural: observação cientifica aparentemente “neutra”. Qualquer elemento ideológico, no sentido amplo, deve ser eliminado para não “contaminar” a observação serena da realidade. Não é difícil advertir o caráter conservador deste enfoque. O próprio Durkheim sintetizou assim a essência do pensamento positivista: “Nosso método não tem, pois, nada de revolucionário. É inclusive, em certo sentido, essencialmente conservador, pois considera os feitos sociais como coisas cuja natureza, por flexível e maleável que seja, não podemos, pese a tudo, modificar à vontade” (3).

Pelo contrário, o fundamento do materialismo dialético é que não existe nada eterno, nada fixo, nada imutável. Tudo é perecível. O mundo está em permanente movimento e transformação. Poderia dizer que este princípio dialético se aplica na natureza, onde existe uma transformação perpetua, mas existe uma diferença capital entre a história natural e a história humana. A história da humanidade é produto das relações sociais entre seres humanos. A história da natureza, com suas leis, como a formação do sistema solar, os movimentos da Terra ou a evolução das espécies… não é obra do ser humano. Para o pensamento marxista, todos os fenômenos econômicos, sociais e políticos são produtos da ação humana. Não são resultado de leis naturais, universais e absolutas. Portanto, podem ser transformados. A sociedade, como um todo pode mudar. Nesse sentido, Marx criticava aos eruditos de seu tempo: “os filósofos não fizeram mais que interpretar de diversas formas o mundo, mas do que se trata é de transformá-lo” (4).

O certo é que todo investigador parte de certa orientação cognitiva, sugerida por sua visão de mundo –convicções ideológicas, políticas, sociais, religiosas, valores morais, em sínteses, por suas próprias representações da realidade-.

De acordo com o anterior, toda investigação social –não somente as conclusões, mas a própria definição do tema, da problemática, o método etc.– deriva de uma filosofia e das noções preexistentes na cabeça do estudioso. Isso significa que toda ciência social nada mais é do que uma expressão, um fragmento, de uma visão social do mundo. Por tanto, nenhuma escola de pensamento pode assumir o mérito de poder descrever a realidade de maneira “pura”, factual, tal qual é.

Não porque não exista uma realidade objetiva comprovável, uma “verdade” histórica ou sociológica. Mas porque a realidade, nosso objeto de estudo, é por definição infinito. Está em constante mutação e todo aquele que aspire a conhecê-lo é parte desse mesmo objeto. A relação entre objeto e sujeito no estudo social é dialética. Em consequência, o máximo que qualquer corrente de interpretação –inclusive o marxismo- pode aspirar é aproximar-se o mais possível da verdade objetiva.

Por outra parte, a realidade histórica e social está atravessada pela disputa entre distintas correntes de interpretação. Isso faz impossível que o pesquisador elimine suas “pré-noções”. Frente a este problema, a saída que o positivismo –com suas variantes– propõe é, em essência, a autocensura, o “autocontrole” dos intelectuais. O historiador não deve ter boca, opinava o historiador alemão Leopold von Ranke.

Nos fatos, o positivismo exige que o estudioso evite o debate teórico-político com outras perspectivas. Assim, o conhecimento não avança. O que em si é limitado –a capacidade de conhecer toda a realidade em sua completa dimensão- foi definitivamente mutilado pela doutrina positivista, incapaz de aceitar que o cientista social não trabalha –ou não deveria- em um laboratório asséptico, protegido por um traje que evite a contaminação do mundo exterior, como se estudasse o novo coronavírus.

O resultado do método empirista, no geral, são trabalhos com excessiva acumulação documental e escassa interpretação geral. É evidente que existe a necessidade inescapável de se basear em fontes primárias. Existe a necessidade de examinar a maior quantidade de fontes no estudo da história, com rigor e olhar crítico. O que não existe –nem nunca existiu – é a imparcialidade histórica, não somente na interpretação, mas também na colocação da própria problemática a ser estudada.

Se o bom uso da documentação é indispensável, também é necessário ter cautela para não fazer dos documentos um fetiche. O problema reside em que, em si mesmos, os documentos não podem contar o que ocorreu “tal como ocorreu”. Nenhum documento poderá expressar mais do que seus autores pensavam sobre algum fato quando o registraram, descartando no ato outros tantos. No máximo expressarão aquilo que seus autores queriam que as pessoas pensassem aquilo que eles pensavam ou pretendiam. Por exemplo, o diário pessoal do conde d’Eu durante a campanha brasileira contra o Paraguai sem dúvida é uma fonte importante, mas é obvio que, em sua posição de comandante aliado, o conde registrou em suas memórias tudo aquilo que o convinha que passasse para a posterioridade, e omitiu o que não, como as atrocidades em Piribebuy ou Acosta Ñu (5).

Nenhum historiador ou historiadora está em condições de narrar e analisar os fatos tal como sucederam. Tem, obviamente, a obrigação de ser exato quando expõe os fatos. Por exemplo, a batalha de Tuyutí ocorreu em 24 de maio de 1866 e não em outra data. Evidentemente, tem também a obrigação de verificar suas fontes, primárias ou secundarias, mas seu labor não se limita a relatar, o centro de seu trabalho estará sempre na interpretação desses acontecimentos e do que está consignado nessas fontes: seu principal trabalho é entender a dinâmica que explica por que os fatos sucederam deste modo e não de outro; tomar posição nos debates que o problema coloca; em suma, extrair conclusões. Somente assim o processo de conhecimento pode avançar.

E essa interpretação derivará inevitavelmente das posições ideológicas e políticas, ou seja, da visão de mundo que, consciente ou inconscientemente, o historiador assuma e reproduza. Se consideramos o Paraguai do século XIX, os próprios conceitos de ditadura, participação popular, revolução, contrarrevolução, reforma, livre comércio, estatismo, clericalismo, e sua valoração, implicam inevitavelmente uma visão ideológica. O próprio conceito de ideologia está sujeito a uma perspectiva ideológica.

Se o que descrevemos até aqui é certo, não procedem as conhecidas etiquetas com as que o academicismo tenta desacreditar o marxismo: relato ideológico, panfletário, historiografia militante. Não procedem porque todos estamos metidos até o pescoço no rio da história. Ninguém está seco, simplesmente “observando” os acontecimentos desde suas margens.

Por esse motivo, o marxismo não aspira a elaborar uma ciência neutra. Pelo contrário, busca compreender –para transformar– a realidade desde o ponto de vista da classe trabalhadora e os setores oprimidos. Dito de outra maneira, seu enfoque tem um corte de classe.

Rosa Luxemburgo reafirmou esta premissa: “a sociedade real está composta de classes que possuem interesses, aspirações e concepções diametralmente opostas, uma ciência social humana geral, um liberalismo abstrato, uma moral abstrata, são na atualidade ilusões, utopia pura” (6).

Lenin, por sua parte, explicou o problema em termos mais concretos: “Esperar uma ciência imparcial em uma sociedade de escravidão assalariada, seria a mesma pueril ingenuidade que esperar dos fabricantes imparcialidade quanto à conveniência de aumentar os salários dos operários, em detrimento das ganancias do capital” (7).

Isso significa que, independentemente se o autor admite ou não, toda análise histórica é e será sempre ideológica. Todo historiador, consciente ou inconscientemente, ao escrever, fará política ao serviço de uma outra classe ou setores de classe.

O aparato das universidades, como reflexo de uma sociedade de classes que arrastra tradições autoritárias e anticomunistas, pode continuar anatemizando o marxismo. Isso é compreensível. Contudo, é inaceitável que o faça mascarando seu próprio caráter ideológico. Essa atitude não é honesta. Não é sério exigir aos demais que eliminem suas pré-noções enquanto ocultam sua concepção fundamental: a conservação da sociedade burguesa. O leitor, evidentemente, não tem motivo para concordar com as ideias políticas do historiador, no entanto, este tampouco tem motivos para ocultá-las.

Por último: a verdade histórica somente interessa às classes dominadas, não às dominantes. Por isso o ponto de vista das classes exploradas é o que melhor pode se aproximar ao conhecimento; as teorias burguesas possuem intencionalmente um caráter de ocultação ideológica, posto que são parte do mecanismo necessário para legitimar, reproduzir ou estabilizar a ordem imperante. Nenhum capitalista fala em nome do seu interesse real, mas do “bem comum”, da “cidadania”, do “povo”, da “nação”. O marxismo, como doutrina cientifica, aspira a desnudar os mecanismos de exploração do capitalismo e, por isso, não tem interesse em camuflar seus propósitos nem sua “ideologia”. A razão é que os oprimidos necessitam alcançar consciência da realidade como condição para lutar abertamente por seus interesses. Os opressores necessitam ocultar e dissimular.

Para a burguesia, sua sociedade e sua economia são naturais e eternas. Para o marxismo, a ordem capitalista é histórica, transitória. Por tanto, pode ser superada.

Se as ideias dominantes de cada época são as ideias das classes dominantes, a pretensão de uma suposta imparcialidade histórica não somente é ilusória, mas nociva, posto que somente contribui a reforçar um dos pilares do sistema de dominação ideológica das classes possuidoras, que tentam fazer passar seus interesses como os gerais desta sociedade desigual.

Tradução: Túlio Rocha.

Publicado originalmente en El Suplemento Cultural de ABC Color.

Notas:

(1) Francisco Doratioto. Maldita Guerra. Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 20-21.

(2) Auguste Comte. Cours de philosophie positive. Tomo VI. París: Bachelier, Imprimeur-Libraire, 1839, pp. 190-191.

(3) Emile Durkheim [1895]. Las reglas del método sociológico. México DF: FCM, 1997, p. 9.

(4) Karl Marx [1845]. Tesis sobre Feuerbach. Disponible en: <https://www.marxists.org/espanol/m-e/1840s/45-feuer.htm>.

(5) Rodrigo Goyena Soares (org.). Conde d’Eu: Diário do comandante em chefe das tropas brasileiras em operaçãon a República do Paraguai. Río de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

(6) Rosa Luxemburgo [1899]. Reforma o revolución. París: Spartacus, 1947, p. 75.

(7) V. I. Lenin [1913]. Tres fuentes y tres partes integrantes del marxismo. En: Obras Completas. Tomo 23. Moscú: Progreso, 1982, p. 40.