O duplo processo de restauração e revolução na Europa Oriental
09/26/2024A restauração da economia de mercado na antiga URSS, e nos demais Estados operários do Leste Europeu, na China e em Cuba provocou uma crise mundial na esquerda. Uma poderosa campanha ideológica sentenciou uma suposta “vitória final” do capitalismo. As sociedades humanas, segundo as cartilhas neoliberais, teriam alcançado o “fim da História”.
Por Ronald León Núñez
Esta campanha, que chegou ao clímax na última década do século XX, perdeu hoje boa parte de seu poder de persuasão. As crises econômicas, as guerras, a destruição ambiental, a fome, a pandemia, entre outros flagelos, se agravaram de maneira brutal nos últimos 30 anos, ridicularizando os apologistas do capitalismo.
No entanto, a ideia do “fim do socialismo” causou estragos na chamada esquerda. O ceticismo espalhou-se por todas as partes. Incontáveis organizações e milhares de militantes, inclusive uma boa parte dos que se diziam marxistas, se degeneraram programática, política e, em muitos casos, até moralmente.
Por essas razões, o balanço do duplo processo de restauração capitalista e desaparecimento dos antigos Estados operários é ineludível para as correntes de esquerda. As cenas dos alemães orientais demolindo o ignominioso Muro de Berlim foram utilizadas tanto pela propaganda imperialista como pela stalinista para introduzir uma ideia central: foram as massas as que, com sua mobilização, restauraram o capitalismo e decretaram uma “derrota histórica” à humanidade.
Pretendemos oferecer evidências do contrário. O capitalismo não foi restaurado por uma invasão militar estrangeira, nem, muito menos, pelas massas desses países. A responsabilidade histórica por essa traição cabe à burocracia stalinista, que governava esses Estados com mão de ferro[1]. Os fatos mostram que o processo de restauração burguesa começou muito antes que as mobilizações operárias e populares do período 1988-1991. Portanto, as massas não poderiam restaurar algo que já imperava.
A restauração
A teoria antimarxista do “socialismo em um só país” e seu correlato político, a coexistência pacífica com o imperialismo, impulsionada pelo stalinismo, levou ao atraso tecnológico, queda da produtividade e, sobretudo, dependência financeira das potências ocidentais. Isso era inevitável, já que a revolução socialista não se expandiu e a economia mundial continuou sob controle do imperialismo.
A restauração burguesa havia começado, na antiga Iugoslávia, na década de 1960, e na China, a partir de 1978. O “terço socialista” da humanidade, que não era uma ilha, sentiu o impacto duríssimo da crise econômica mundial da década de 1970. No início da década de 1980, endividada e dessangrando-se no Afeganistão, a burocracia soviética concluiu que o colapso econômico era inevitável. Assim, para manter seus privilégios, a burocracia toma o caminho da restauração capitalista.
Mikhail Gorbatchov assumiu o poder em 1985 com esse propósito. Em 1986, o XXVII Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) iniciou a transição para a economia de mercado, desmontando o que restava da estrutura do Estado operário em três sentidos principais: a liquidação da propriedade socializada dos principais meios de produção; o fim do monopólio do comércio exterior; o fim da economia planificada.
Em 1938, Leon Trotski havia proposto uma encruzilhada histórica: “O prognóstico político tem um caráter alternativo: ou a burocracia, tornando-se cada vez mais o órgão da burguesia mundial no Estado operário, derrubará as novas formas de propriedade e lançará o país de volta ao capitalismo ou a classe operária destruirá a burocracia e abrirá uma saída em direção ao socialismo”[2].
Meio século depois, ainda que pela negativa, a história confirmava esse prognóstico. As sucessivas tentativas de revolução política que pretenderam derrotar o Termidor stalinista para salvaguardar as relações não capitalistas de propriedade, haviam sido derrotadas. Esta derrota, muito anterior a 1989-1991, tornou possível a restauração da propriedade capitalista, inevitável enquanto a burocracia mantivesse o poder.
A luta das nacionalidades oprimidas
O descontentamento com a deterioração das condições de vida se combinou com o renascimento da luta contra a opressão nacional que impunha Moscou às repúblicas não russas que compunham a URSS. Essa dominação, insuportável, gerou uma pressão centrífuga que levaria, no final de 1991, à desintegração da URSS em 15 repúblicas.
O processo revolucionário que liquidaria a ditadura stalinista começou em dezembro de 1986, quando, em Alma Ata, capital do Cazaquistão, o povo se levantou contra a designação de um russo como líder do partido que detinha o poder.
A partir dessa faísca, a onda de protestos na URSS combinará reivindicações materiais –denúncia da carestia, desabastecimento, racionamento–; movimentos contra a opressão nacional –em certos casos, inclusive pela independência–; e exigências por liberdades democráticas elementares, tudo por meio de greves operárias e manifestações massivas com caráter político.
Em 1987, estoura uma revolta em Nagorno-Karabakh. Sua população exigia ser parte da Armênia. A crise gerou uma greve geral tanto no Azerbaijão como na Armênia. Lituânia declarou sua independência em março de 1990. A reação de Gorbatchov foi o envio de tropas russas para reprimir o movimento democrático, com um saldo de 19 mortos. Além de impor um bloqueio econômico aos lituanos, que foi derrotado pela solidariedade dos mineiros e operários russos.
Em outras regiões, como Georgia e Azerbaijão, também cresceu o anseio independentista, mas foi reprimido duramente. Depois de altos e baixos, a pressão desintegradora se impôs. Moscou foi perdendo condições de manter seu controle.
Em agosto de 1991, Estônia, Letônia, Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia, Azerbaijão, Quirguistão, oficializam suas independências. O efeito dominó empurrou o restante pelo mesmo caminho, até que em 8 de dezembro de 1991, as repúblicas mais fortes –Rússia, Ucrânia e Bielorrússia– assinaram o Tratado de Belavezha e constituíram a Comunidade de Estados Independentes, desferindo o golpe final na URSS.
O protagonismo do proletariado soviético
Ainda que não tenha conseguido impedir a restauração burguesa, o movimento operário soviético, especialmente os mineiros, cumpriu um papel protagonista na destruição do terrível regime stalinista.
Em fevereiro de 1989, um impressionante protesto operário em Minsk, Bielorrússia, desfila com uma faixa que leva a inscrição: “As fábricas para os operários, a terra para os camponeses e o poder para o povo”.
Em julho de 1989, explode a mais importante onda de greves da história da URSS. Os mineiros das jazidas de carvão de Kuzbass, Donbass, Vorkuta, Ekibastuz e Karaganda cruzam os braços. Se opõem ao aumento do ritmo de produção e exigem aumento salarial e fornecimento de bens de primeira necessidade (carne, linguiça, presunto, medicamentos, seringas descartáveis etc.). Os mineiros organizam comitês de greve, que funcionam sob a base de assembleias massivas. A similaridade com a ascensão da classe operária polonesa e a construção da Solidariedade é notável[3].
Rapidamente incorporam demandas políticas: fim do monopólio do poder pelo PCUS e dos privilégios para os governantes, e eleições livres e diretas para o Soviete Supremo da URSS e os sovietes locais.
O Kremlin, superado pelos acontecimentos, enviou carregamentos de alimentos, sabonetes etc. Promete, também, melhorar o abastecimento, a saúde, as aposentadorias, permitir certa participação operária no controle das minas. Mas nenhuma promessa é cumprida.
Em outubro de 1989, o comitê de greve dos operários de Vorkuta declara: “A experiência das greves econômicas na URSS ensina que as reivindicações econômicas não têm sentido sem uma ruptura do sistema totalitário burocrático existente”[4].
Em julho de 1990 explodem novas greves. Em outubro, os operários convocam um congresso que reúne delegados de quase 700 minas, funda o primeiro sindicato independente e rechaça o “Programa dos 500 dias”, impulsionados pelo PCUS, uma “terapia de choque” que acelerava as privatizações na URSS.
Em março de 1991, uma nova onda de greves mineiras, além de demandas econômicas, exige a renúncia de Gorbatchov, a dissolução do Soviete Supremo da URSS e a convocação de eleições livres. A população de Moscou simpatiza com os grevistas e colabora com alimentos. Aderem à greve dos operários do complexo siderúrgico Ulramash, nos Montes Urais. Em fins de março de 1991, 165 minas da URSS estão paralisadas. Em 3 de abril, a Eletroeletrônica Kozlov, em Minsk, para de produzir. Assim começa uma onda de greves em toda a Bielorrússia. As greves se espalham para Leningrado, Sverdlovsk, Baku (Azerbaijão), Ucrânia. Em finais de abril, cerca de 50 milhões de trabalhadores cruzaram os braços na Rússia, com apoio da Federação Russa de Sindicatos Independentes, uma ruptura dos sindicatos oficiais.
O PCUS tinha perdido o controle da classe operária. Ficou para trás a época em que Nikita Kruschev despachava carros de combate e fuzilava imediatamente os dirigentes das greves proletárias, como ocorreu em 1962 em Novotcherkask.
O anúncio de concessões salariais desacelera o movimento grevista. O 5 de maio, os mineiros encerram sua greve com a promessa de que suas reivindicações econômicas seriam atendidas com a entrega da mina à Federação Russa.
Revoluções no bloco soviético
O processo revolucionário na URSS provocou uma torrente de greves e revoluções antiditatoriais que, desde 1988, sacudiu os países do Leste Europeu que estavam sob tutela de Moscou.
Em todo o bloco soviético, o imperialismo havia penetrado profundamente, valendo-se do comércio desigual e do aumento da dívida externa, mecanismos de dominação bem conhecidos na periferia capitalista.
Quando as massas derrubaram o Muro de Berlim, metade desses países havia solicitado ser, ou já era, membro do FMI. Romênia ingressou em 1972; Hungria, em 1982; Polônia, em 1986. Bulgária e Tchecoslováquia, em 1990[5]. A Federação Russa, em 1992. Para se ter uma ideia da submissão desse bloco ao imperialismo, em 1981, o ditador Ceausescu anuncia que pagaria a totalidade da dívida da Romênia com os bancos, com uma canetada só, utilizando um empréstimo do FMI que implicava um pacote draconiano de medidas de austeridade[6].
Em 1989, a mobilização derrota os ditadores Zhivkov e Kádár, na Bulgária e na Hungria, respectivamente. Facções da própria burocracia impulsionaram a transição ao regime parlamentar, suprimindo a legislação que estabelecia o monopólio político dos partidos comunistas. Em outubro de 1989, dissolveu-se o Partido Socialista Operário Húngaro (MSZMP, sigla em húngaro). Em abril de 1990, o Partido Comunista Búlgaro (BKP, sigla em búlgaro) fez o mesmo. Ambos se reciclaram como partidos socialdemocratas.
Na Polônia, como analisamos anteriormente, o regime de Jaruzelski, ultrapassado por um poderoso processo de greves e em meio a um marasmo econômico, pactuou uma transição ordenada para uma democracia liberal com a direção do Solidariedade. Em 31 de dezembro de 1989, a República Popular da Polônia deixou de existir. Lech Walesa venceu as eleições de dezembro de 1990. O POUP havia se dissolvido em janeiro desse ano.
Desde 1988, os protestos por liberdades democráticas sacudiam a Tchecoslováquia. Em 24 de novembro de 1989, a “Revolução de Veludo” alcançou sua maior convocatória em Praga, onde quase um milhão de pessoas se concentram na Praça Wetzel, fazendo ouvir molhos de chaves como símbolo da necessidade de abertura política. Em Bratislava, 100.000 protestaram. Houve marchas em cidades como Brno, Kosice e Ostrava. Em 27 de novembro, houve uma greve geral. Dois dias depois, o próprio governo acaba com o monopólio político do Partido Comunista (KSČ, sigla em checo e eslovaco). Em 10 de dezembro, demite o ditador Gustav Husak. Em 29 de dezembro de 1989, Václav Havel toma posse do governo, e Alexander Dubcek, o dirigente que caiu em desgraça após a derrota da Primavera de Praga em 1968, dirige o novo Parlamento.
A revolução antiditatorial mais sangrenta ocorreu na Romênia, onde os protestos adquiriram um caráter insurrecional. O ditador Ceausescu se preparou para resistir ao embate das massas com tudo o que tinha. Foi em vão. Em dezembro de 1989, uma multidão assaltou a sede do governo e outros prédios públicos. Ceausescu e sua esposa, Elena, fogem de Bucareste. Mas são capturados, julgados sumariamente por um tribunal militar e fuzilados em 25 de dezembro. A revolução antiditatorial tinha triunfado, com o custo de mais de mil mortos e cerca de 3.000 feridos. Forma-se um governo de transição, que convoca as eleições em 1990. O Partido Comunista Romeno havia se dissolvido em 22 de dezembro de 1989.
Alemanha Oriental: «Wir sind ein volk»
Os protestos contra a ditadura de Erich Honecker na República Democrática Alemã (RDA) começaram em 1987, mas se intensificaram dois anos depois. No final de setembro de 1989, começam as “manifestações das segundas-feiras” (Montagsdemonstrationen), que crescem semana a semana, apesar da forte repressão. Na segunda, 2 de outubro de 1989, cerca de 20.000 pessoas marcham em Leipzig; na segunda-feira seguinte, 70.000; na próxima, 100.000. Exigem “liberdade de viagem, de imprensa e de reunião”. No dia 23 de outubro, mais de 300.000 pessoas gritam a palavra de ordem: Wir sind das volk, “Nós somos o povo!”.
A imensa pressão social força o Comitê Central do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED, sigla em alemão) a aceitar a renúncia de Honecker no dia seguinte. O sucede Egon Krenz.
Mas os protestos não param. No dia 4 de novembro de 1989, cerca de um milhão de pessoas se reúne na Alexanderplatz de Berlim Oriental para exigir o fim do monopólio político do SED. Cinco dias depois, milhares de alemães orientais demoliram o Muro de Berlim. A palavra de ordem “Nós somos o povo!” dá lugar a outra: Wir sind ein Volk, “Somos um só povo!”.
Em 1º de dezembro, é abolida a instituição do partido único. Krenz renunciou em 7 de dezembro. A reunificação alemã, uma conquista democrática histórica, se concretiza em 3 de outubro de 1990.
Vitória na derrota
A restauração do capitalismo é o balanço histórico do stalinismo, não o das massas soviéticas e do Leste Europeu.
É o legado de uma casta burocrática que, muito antes de 1988-1991, havia usurpado o poder dos sovietes, interrompendo o caminho rumo ao socialismo e iniciado o retrocesso para a economia de mercado.
A restauração demonstrou o fracasso da teoria do socialismo em um só país e da política de coexistência pacífica com o imperialismo, pedras angulares da doutrina stalinista.
A história confirmou que não é possível chegar ao socialismo apenas na arena nacional. A luta contra as burguesias nacionais é o ponto de partida, mas o socialismo como tal será mundial ou não será.
Também ficou provado que o socialismo é inconcebível sem um regime político de ampla democracia operária, posto que a política de qualquer casta burocrática em escala nacional e internacional, por sua própria natureza, minará as bases econômico-sociais de qualquer Estado operário e, cedo ou tarde, imporá a restauração burguesa. As burocracias stalinistas se transformaram no embrião das novas burguesias, a partir do saque e dilapidação da propriedade socializada.
Todos os processos revolucionários nos antigos Estados operários foram derrotados, fato que prolongou a existência da burocracia stalinista governante e, consequentemente, acabou pavimentando o caminho para o fim das economias planificadas.
O projeto restauracionista surgiu das entranhas da nomenklatura. Na URSS, como expusemos aqui, esse processo começou em 1986. Na China, o retorno ao capitalismo havia começado em 1978. Isto é, muito antes do turbilhão de mobilizações de massas e greves operárias na URSS e no Leste Europeu. Mais de uma década antes do massacre em Tiananmen.
Decerto, as massas não saíram às ruas para reclamar “a volta do capitalismo”, como alardeia o imperialismo e o stalinismo, este último para escapar de sua própria falência história, mas sim para enfrentar as consequências econômico-sociais de uma restauração que havia sido imposta desde antes por regimes ditatoriais. As massas não enfrentaram “ditaduras do proletariado”, ainda que burocratizadas, mas sim ditaduras capitalistas. Atualmente, todos os antigos Estados operários são países capitalistas, em todos vigora a economia de mercado. Esta, sem dúvida, é uma dura derrota.
Entretanto, a história não se deteve na restauração capitalista. Anos depois dela, como mostramos, grandes mobilizações populares e greves operárias destruíram os regimes stalinistas, totalitários, de partido único, tanto no Leste Europeu como na URSS.
Esses povos não conseguiram evitar nem reverter a restauração, mas conquistaram importantes liberdades democráticas nesses países, lutando contra ditaduras (já capitalistas) totalitárias e conquistando algo transcendental: a destruição do aparato mundial do stalinismo, o mais poderoso centro da contrarrevolução mundial no século XX. Esta foi uma tremenda vitória. Uma vitória na derrota.
Tradução: Nívia Leão.
Publicado originalmente no Suplemento Cultural de ABC Color e em A Terra é Redonda
Notas:
[1] Consultar: https://www.abc.com.py/edicion-impresa/suplementos/cultural/2021/12/26/la-disolucion-de-la-urss/
[2] LEON, Trotski. O Programa de Transição. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap02.htm#17. Acesso em 23/01/2024.
[3] Consultar: https://aterraeredonda.com.br/polonia-1980-1989/
[4] TALPE, Jan. Los Estados obreros del Glacis. Discusión sobre el Este europeo. São Paulo: Lorca, 2019, p. 143.
[5] China entrou no FMI em 1980, dois anos após ter iniciado a transição ao capitalismo.
[6] A dívida havia aumentado de 1,2 bilhões de dólares em 1971 a 13 bilhões em 1982.