Hungria, 1956
09/26/2024O “degelo” iniciado com o XX Congresso do PCUS mostrou, em poucos meses, que não se transformaria em uma primavera.
Por Ronald León Núñez
Uma revolução operária e popular abalou o regime burocrático stalinista na Hungria entre 23 de outubro e 10 de novembro de 1956. Foi um processo mais amplo e profundo do que a greve geral em Berlim Oriental, três anos antes. Contudo, ela teve o mesmo destino. A revolução política húngara seria esmagada pelo Exército Vermelho, mas não sem deixar um exemplo duradouro de militância que inspiraria futuros processos antiburocráticos no Leste Europeu.
Dois precedentes importantes. Em fevereiro de 1956, foi realizado o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), no qual Nikita Khrushchev denunciou os “crimes de Stalin” de maneira parcial e hipócrita, dado que ele próprio havia participado deles. Também anunciou reformas no Estado e no partido. A manobra dos sucessores de Stalin consistia em instalar a ideia de que as deficiências do regime soviético se reduziam ao “culto à personalidade” do antigo líder supremo.
O chamado discurso secreto prometia uma “desestalinização” da sociedade soviética, propósito que seria largamente esgrimido como justificativa para sucessivos expurgos na própria burocracia, em crise desde a morte de Stalin. Essa retórica, ademais, respondia às pressões de um crescente descontentamento das massas na esfera de influência da antiga URSS.
De fato, as mudanças anunciadas logo se mostraram cosméticas. Nenhuma facção da burocracia pretendia democratizar o aparato stalinista. Fazer isso implicaria um suicídio social. No entanto, o terremoto político causado pelo XX Congresso do PCUS fez com que setores dos partidos comunistas da Europa Oriental, mas principalmente os povos dos países do bloco soviético, concebessem seu resultado como a possibilidade de uma abertura real.
As massas desses países perceberam, no mínimo, uma fissura que poderia ser explorada. Entretando, quando elas se movimentaram para ampliá-la, canalizando suas legítimas aspirações materiais e democráticas, a chamada “desestalinização” anunciada em Moscou expôs sua falsidade. A resposta foi a mesma que Stalin teria dado: calúnia, perseguição e repressão impiedosa.
Posnânia: “exigimos pão e liberdade”
O primeiro sinal disso foi na cidade polonesa de Posnânia, o segundo antecedente imediato da revolução húngara. Entre 28 e 30 de junho de 1956, mais de 100 mil trabalhadores da fábrica Cegielski entraram em greve por melhores condições de trabalho e de vida. O protesto foi reprimido pela ação de mais de 10 mil soldados e 400 tanques do exército polonês, comandados por oficiais russos. O resultado foram 57 mortos, cerca de 600 feridos e centenas de membros da oposição presos.
Embora a propaganda stalinista acusasse os manifestantes de serem “anticomunistas” ou “agentes provocadores contrarrevolucionários e imperialistas”, a verdade é que os grevistas cantavam a Internacional enquanto desfilavam com faixas onde se lia “Exigimos pão e liberdade”. Após a repressão em Posnânia, ciente de que existia um despertar democrático e um movimento em direção à autodeterminação nacional em andamento, a ditadura do Partido dos Trabalhadores Unidos da Polônia (PZPR) resolveu aumentar os salários em 50% e prometeu mudanças políticas.
Contudo, o descontentamento popular não havia sido suprimido. No caso polonês, à morte de Stalin deve ser somada a do então secretário-geral do partido, Boleslaw Bierut, conhecido como o “Stalin da Polônia”. A crise da ala linha-dura do stalinismo polonês aprofundou-se a tal ponto que o próprio aparato reabilitou um líder “moderado”, Wladyslaw Gomulka, para assumir o governo. Moscou ameaçou invadir o país.
Uma nova onda de protestos populares eclodiu. O próprio Khrushchev foi à Polônia para impedir a ascensão de Wladyslaw Gomulka. Mas, ele tinha o apoio do exército polonês e gozava de credibilidade entre o povo. Depois de negociações tensas e garantias plenas de que Wladyslaw Gomulka e seus seguidores não eram uma ameaça séria ao governo russo e não desafiavam o Pacto de Varsóvia, o Kremlin cedeu às mudanças. Wladyslaw Gomulka venceu o braço de ferro, capitalizando habilmente a raiva popular contra Moscou. Os burocratas poloneses ganharam maior autonomia nos assuntos internos.
Em 24 de outubro de 1956, diante de uma grande manifestação em Varsóvia, Wladyslaw Gomulka pediu o fim das manifestações e prometeu um “novo caminho para o socialismo”, uma espécie de “comunismo nacional polonês”.
Moscou não invadiu a Polônia porque conseguiu controlar a agitação por meio da burocracia local. Assim, os russos evitaram confrontar a Polônia e a Hungria simultaneamente, optando, em vez disso, pela supressão militar da revolução húngara, que havia eclodido em 23 de outubro. A revolução política na Polônia seria retomada em 1970-71.
A revolução húngara
O processo polonês foi seguido de perto na Hungria, onde também reinava uma terrível ditadura stalinista. A classe operária não tinha voz nas decisões políticas e econômicas, controlada pela liderança do Partido dos Trabalhadores Húngaros (MDP, pelas siglas em húngaro)[1], que, por sua vez, estava sob a tutela de Moscou.
Nesse regime de partido único, sem o direito para a classe operária de formar partidos ou sindicatos independentes do governo, a polícia política, chamada de Autoridade de Proteção do Estado (ÁVH), era pouco menos que onipotente.
A ausência de liberdades democráticas combinou-se com uma odiosa opressão nacional, expressa, acima de tudo, em uma terrível pilhagem da riqueza nacional em favor da burocracia soviética. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os vencedores impuseram o pagamento de 300 milhões de dólares ao longo de seis anos em reparações de guerra à URSS, Tchecoslováquia e Iugoslávia[2]. O Kremlin estava penalizando o povo húngaro pela aliança que sua burguesia havia feito com o nazismo. O Banco Nacional Húngaro estimou, em 1946, que o custo das reparações consumia entre 19 e 22% da renda nacional anual. Em 1956, a hiperinflação, a escassez e o racionamento tornaram-se intoleráveis. A paciência popular estava se esgotando.
As concessões obtidas pelos poloneses estimularam o povo húngaro a lutar. Mesmo antes do discurso de Khrushchev, havia sinais de dissidência intelectual no próprio partido governista. O mais conhecido foi o Círculo Petöfi, nomeado em homenagem ao poeta nacional Sándor Petöfi, um símbolo da revolução burguesa de 1848 contra a dinastia Habsburgo. Esse grupo de intelectuais publicou uma série de artigos críticos a partir de 1955.
A crise política agravou-se. Em 18 de julho de 1956, o Politburo soviético exigiu a renúncia de Mátyás Rákosi como secretário-geral do partido. Mátyás Rákosi, que se descrevia como “o melhor discípulo húngaro de Stalin”, ocupava o cargo desde 1948. Sua queda evidenciou a fraqueza do regime. Ele foi sucedido por Erno Gerö, apelidado de “Açougueiro de Barcelona” por causa de seu envolvimento eficiente na repressão ao POUM e no assassinato de Andreu Nin durante a Revolução Espanhola. No entanto, essa medida não acalmou as coisas. Em poucos meses, seu governo seria atropelado pelos acontecimentos.
Em 22 de outubro, uma assembleia universitária aprovou uma lista de dezesseis reivindicações políticas[3]. A primeira dizia: “Exigimos a retirada imediata de todas as tropas soviéticas…”. O segundo ponto exigia a eleição, por voto secreto, de uma nova direção para o partido comunista em todos os níveis. O ponto três exigia a formação de um governo “sob a liderança do camarada Imre Nagy”, o único líder do partido com relativa credibilidade.
Eles acrescentaram: “Todos os líderes criminosos da era Stalin-Rákosi devem ser depostos imediatamente”. As demais reivindicações variavam entre o direito de greve, liberdade de opinião, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, rádio livre, salário mínimo para os trabalhadores etc. O movimento estudantil também anunciou seu apoio a uma marcha de solidariedade com “o movimento libertário polonês”, convocada para o dia seguinte. O folheto terminava com um apelo: “Os trabalhadores das fábricas estão convidados a participar da manifestação”[4].
Em 23 de outubro, cerca de 200 mil pessoas marcharam até o prédio do Parlamento. Estudantes e trabalhadores gritavam: “Fora russos! Rákosi, para o Danúbio! Imre Nagy, para o governo! Todos os húngaros, conosco!”.
Erno Gerö emitiu uma proclamação na qual chamou os manifestantes de reacionários e chauvinistas. Isso provocou a ira da multidão, que derrubou uma estátua de Stalin de dez metros de altura. Uma parte marchou em direção à Rádio Budapeste, que estava fortemente protegida pela ÁVH. Quando uma delegação tentou entrar para transmitir suas proclamações, a polícia política abriu fogo. Pessoas foram mortas. Manifestantes enfurecidos incendiaram carros de polícia e invadiram depósitos de armas. Em vez de reprimir, alguns soldados húngaros solidarizaram-se com o protesto. Começava a revolução.
Naquela mesma noite, soldados russos e tanques T-34 invadiram Budapeste. Houve tiroteio na cidade. Em 24 de outubro, os trabalhadores declararam uma greve geral. Mais unidades do exército húngaro passaram para o lado dos revolucionários. A rebelião tomou conta do país em poucas horas.
Erno Gerö e o então primeiro-ministro, András Hegedüs, fugiram para a União Soviética, mas não antes de assinar um pedido de “assistência” às tropas soviéticas. János Kádár assumiu o cargo de secretário-geral do partido e indicou Imre Nagy, um líder da ala considerada reformista para o cargo de primeiro-ministro.
Sem perda de tempo, Imre Nagy tentou desmobilizar o povo. Ele prometeu negociar a retirada das tropas soviéticas se a ordem fosse restaurada. Tarde demais. A revolução estava em andamento. Surgiram os primeiros conselhos e milícias operárias, com delegados eleitos em fábricas, universidades e unidades do exército. Nas fábricas, havia discussões sobre a democracia interna do partido comunista. Apesar de sua superioridade militar, os invasores sofreram pesadas baixas. Os húngaros, apelando a táticas de guerrilha urbana, inutilizaram dezenas de tanques soviéticos.
Em 27 de outubro, um novo governo foi formado sob a liderança de Imre Nagy, que incluía o filósofo Georg Lukács como Ministro da Cultura e dois ministros não comunistas. No calor dos acontecimentos, surgiram os primeiros jornais independentes e alguns partidos políticos foram legalizados.
Com essas concessões, o governo tentou apaziguar as massas, fazer o movimento recuar e negociar com os russos. Após um acordo com o Kremlin, Imre Nagy anunciou a retirada imediata das tropas soviéticas de Budapeste e a dissolução da ÁVH. Em 30 de outubro, a maioria das unidades soviéticas havia partido para seus quartéis fora da capital. Houve júbilo nas ruas. Aparentemente, os russos estavam deixando a Hungria para sempre.
A sensação de vitória fortaleceu o movimento. Os conselhos operários multiplicaram-se. Em alguns municípios, eles assumiram as tarefas de um governo paralelo. Havia planos para eleger um Conselho Nacional. A revolução política estava gerando embriões de duplo poder.
A ação das massas parecia imparável. Pierre Broué registra o testemunho de Gyula Hajdu, um militante comunista de 74 anos, que tornou pública sua indignação com a burocracia: “Como os líderes comunistas poderiam saber o que estava acontecendo? Eles nunca se misturam com os trabalhadores e as pessoas comuns, você não os encontra nos ônibus, porque todos eles têm carros, você não os encontra nas lojas ou no mercado, porque eles têm suas lojas especiais, você não os encontra nos hospitais, porque eles têm sanatórios para eles”[5].
A revolução política antiburocrática, como suas predecessoras, também assumiu o conteúdo de uma revolução de libertação nacional. A luta contra a opressão nacional realizada pelos russos, na época personificada pelo regime stalinista, foi um dos motores sociais mais poderosos da Hungria. Não era um processo “chauvinista” e “fascista”, como o stalinismo pregava, da mesma forma que hoje apresenta a resistência ucraniana, mas o grito de uma nação oprimida.
O aparato stalinista alegou estar enfrentando uma contrarrevolução com o objetivo de restaurar o capitalismo e entregar o país à OTAN. Isso é completamente falso. Nenhuma das principais reivindicações dos estudantes, dos operários e do povo húngaro em geral questionava a economia nacionalizada. A revolução tinha como objetivo democratizar o partido e o Estado. Seu objetivo era fazer valer o direito de autodeterminação nacional, começando pela expulsão das tropas de ocupação russas. Tanto que, para essa tarefa, a maioria confiava em Imre Nagy e em uma ala do próprio partido comunista.
Durante o interregno em que as tropas russas estiveram fora de Budapeste, multidões invadiram a sede do partido governista, queimaram bandeiras da URSS, lincharam membros da polícia política, não necessariamente por “ódio ao comunismo”, mas por repulsa ao stalinismo e seus agentes locais.
O governo húngaro estava em uma situação difícil. Ele mostrou-se incapaz de restaurar a ordem. Em 1º de novembro, Imre Nagy anunciou a neutralidade húngara e uma possível retirada do Pacto de Varsóvia. O Kremlin decidiu lançar uma segunda e última ofensiva para reprimir a revolução.
Na noite de 3 de novembro, começou a Operação Redemoinho, comandada pelo marechal Ivan Konev. Os russos invadiram Budapeste a partir de vários locais, por meio de ataques aéreos, artilharia e a ação combinada de tanques e infantaria de 17 divisões. Cerca de 30 mil soldados e 1.130 veículos blindados entraram na capital, disparando contra tudo o que se movia. A resistência húngara concentrou-se nas áreas industriais, que foram atacadas incessantemente pela artilharia soviética. A revolução terminou esmagada em 10 de novembro. Mais de 2.500 húngaros foram mortos e quase 13 mil ficaram feridos. Os russos perderam mais de 700 soldados e centenas de tanques, uma prova do espírito de luta dos revolucionários.
Nessa data, um novo governo tomou posse sob a liderança de János Kádár. Ele era totalmente subserviente a Moscou e permaneceu no poder até 1988. A perseguição foi implacável. Uma orgia de vingança política foi desencadeada. Cerca de 20 mil pessoas foram presas, muitas delas enviadas para gulags siberianos. Muitas foram executadas sumariamente. O próprio Imre Nagy foi fuzilado em 1958. Estima-se que 200 mil húngaros deixaram o país para escapar da repressão. Mais uma vez, o aparato stalinista central conseguiu sufocar uma tentativa de revolução política.
Os conselhos operários húngaros foram o ponto mais avançado da revolução. Contudo, esses órgãos não conseguiram elaborar uma estratégia independente de todas as alas da burocracia –a confiança de uma grande parte na figura de Imre Nagy mostrou-se fatal–, que apontasse a conquista de um regime de democracia operária sem alterar a base econômica não capitalista. A revolução húngara confirmou que a ideia de reformar pacificamente os Estados e partidos stalinistas “de dentro para fora” era uma utopia reacionária.
A dinâmica sociopolítica daquele outono de 1956 mostrou não apenas a barbárie impulsionada por Moscou, mas também o caráter não-revolucionário dos ditos “reformadores” poloneses e húngaros. O curso da revolução provou que não surgiram setores comprometidos com uma genuína revolução política das entranhas da burocracia.
O “degelo” iniciado com o XX Congresso do PCUS mostrou, em poucos meses, que não se transformaria em uma primavera. A repressão na Hungria aprofundou a crise dentro dos partidos comunistas em todo o mundo.
No entanto, as massas da Europa Oriental não foram derrotadas. O regime totalitário, a insuportável opressão nacional, a escassez e a opressão nacional levariam a novas revoluções políticas nos países do velho bloco soviético. A próxima investida seria na Tchecoslováquia, no icônico ano de 1968.
Tradução: Marcos Margarido.
Publicado originalmente em A Terra é redonda
Notas:
[1] No decorrer da revolução, o partido foi reorganizado sob o nome de Partido Socialista Operário Húngaro (MSZMP), que se manteve até sua dissolução em 7 de outubro de 1989.
[2] Consultar: <https://goo.su/3fwPw>.
[3] As reivindicações foram elaboradas por uma seção de estudantes do MEFESZ (Sindicato dos Estudantes das Universidades e Academias Húngaras). A reunião foi realizada na Universidade de Tecnologia de Construção.
[4] Consultar: <https://goo.su/5O3nwo>.
[5] FRYER, Peter; BROUÉ, Pierre; BALASZ, Nagy. Hungría del 56: revoluciones obreras contra el stalinismo. Buenos Aires: Ediciones del I.P.S., 2006, p. 106.