Guerra contra o Paraguai: a esquerda e a tentação nacionalista
01/25/2024Há décadas, o justo duelo ideológico contra a “história escrita pelos vencedores” gerou uma distorção não menos prejudicial: o nacionalismo paraguaio, na maioria das vezes degenerado em chauvinismo fanático.
Por Ronald León Núñez
De todas as correntes de interpretação que abordam o estudo da natureza e das consequências da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, nenhuma é tão perniciosa quanto a perspectiva liberal conservadora. Nenhuma é mais merecedora de crítica historiográfica do que a literatura que justifica a causa aliada e seus crimes.
Refiro-me não apenas ao liberalismo mais tosco, o mitrismo clássico, mas também à sua variante moderna: a autodenominada Nova Historiografia, defendida por Francisco Doratioto e seus inúmeros discípulos graduados. Embora igualmente defensora do livre mercado –e, por mais que seus principais expoentes não admitam, embutida no pior dos nacionalismos… o das nações historicamente opressoras da região–, essa versão mais sofisticada do liberalismo reina entre a maioria dos acadêmicos e jornalistas de nosso tempo.
Entretanto, há décadas, o justo duelo ideológico contra a “história escrita pelos vencedores” gerou uma distorção não menos prejudicial: o nacionalismo paraguaio que, na maioria das vezes, degenerou em chauvinismo fanático.
Não é de surpreender, na verdade, que um setor burguês, geralmente associado ao Partido Colorado e seu militarismo, criasse uma narrativa histórica “própria”. Esse não é o problema. O problema é que a maioria da chamada esquerda, mesmo setores que reivindicam o marxismo, também incursionou e se extraviou nesse beco sem saída.
Assim, a verdade é que o nacionalismo raivoso, direitista e racista, expresso por Juan O’Leary, Blas Garay, Manuel Domínguez ou Natalicio González; essa historiografia colorada baseada no culto aos heróis e usada por todas as ditaduras para justificar seu totalitarismo –principalmente a do sanguinário General Stroessner– turvou a visão da maior parte das correntes que se dizem socialistas.
Para evitar possíveis mal-entendidos, convém esclarecer que uma coisa é, sob certas condições, defender a causa nacional de um país oprimido contra a agressão de uma nação opressora. Outra coisa, muito diferente, é ser nacionalista.
A concepção nacionalista tornou-se tão influente que, nos círculos de esquerda e “progressistas” paraguaios, é comum acreditar que a única corrente que pode ser considerada tradicional ou oficial é a liberal. Esse raciocínio esconde o fato de que, pelo menos desde 1936, a visão nacionalista da história tornou-se tão oficial quanto a narrativa liberal o foi nas quase sete décadas que sucederam o final da Guerra contra o Paraguai.
Com o tempo, a esquerda apropriou-se de todo o pacote de exageros –todos eles insustentáveis em um debate sério com qualquer liberal minimamente preparado– dos historiadores nacionalistas: a alegação de que o Paraguai dos López tornou-se uma potência no sentido demográfico –um país com um milhão e meio de habitantes–, industrializado –capaz de competir com nada menos que o Reino Unido–, e militar –capaz de lutar com êxito contra o Brasil e a Argentina.
Como consequência fatal disso, nasceu o culto à personalidade de José Gaspar Rodríguez de Francia e dos dois López. O primeiro, apresentado como o pai da nacionalidade e um líder igualitário. Os segundos, como modernizadores incorruptíveis baseados em uma doutrina que não era apenas nacionalista, mas também anti-imperialista. Todas essas premissas são anacrônicas e falsas.
O vice-presidente Manuel Domínguez, em uma conferência sobre o Paraguai antes da guerra, em 1903, expressou-se nestes termos: “Qual era a situação do Paraguai em 1864? Era a época de ouro da agricultura e da pecuária. Relativamente falando, o Paraguai produzia mais do que qualquer outra nação americana. O país havia atingido o máximo de produção com o mínimo de consumo. O povo, sem necessidades supérfluas, era feliz em sua simplicidade. Não havia miséria, quase nenhuma pobreza. Eles autodenominavam-se o povo mais feliz do mundo”[1].
Quanto da essência dessa explicação histórica não foi assimilada pela maioria dos partidos de esquerda e dirigentes sociais? Cabe refletir sobre isso.
A verdade é que, nem a Francia era igualitarista –como discuti em outro artigo– nem Solano López tinha ou poderia ter uma compreensão e uma prática anti-imperialista. Isso simplesmente não estava em pauta naquela época histórica.
Portanto, a classe trabalhadora e a esquerda socialista não fazem nenhum favor a si mesmas ao erigir um monumento para os López, uma família oligárquica e despótica, que explorou pessoas escravizadas e agiu como se fosse dona do Paraguai.
Devemos compreender que os teóricos do nacionalismo de esquerda, ou os intelectuais adeptos da Teoria da Dependência, ao assumirem certos postulados chauvinistas adoçados com um pouco de populismo, têm em mente um objetivo político claro: distorcer a história e apresentar Solano López como uma espécie de Fidel Castro ou Salvador Allende do século XIX.
Em outras palavras, essa narrativa sempre esteve a serviço de justificar, nos séculos XX e XXI, uma estratégia política reformista e de frente popular, ou seja, a política de aliança permanente com setores burgueses que Stalin sacramentou no Sétimo Congresso da Comintern em 1935, baseada na promoção de uma liderança burguesa ou pequeno-burguesa na luta de classes.
A base teórica da esquerda, de culto aos governos paraguaios decimonónicos de pré-guerra, está na concepção de que no Paraguai e na América Latina se impõe uma “revolução democrática” que deve ser liderada por setores “patrióticos” da burguesia nacional. Na mecânica desse processo, segundo o stalinismo e o nacionalismo de esquerda, a classe trabalhadora desempenharia um mero papel coadjuvante. Essa teoria é incompatível com a estratégia socialista, pois inevitavelmente implica em traição e leva a classe trabalhadora da cidade e do campo às piores derrotas.
Estamos diante de um problema sério. O endeusamento de heróis nacionais nunca foi inofensivo. É um relato histórico a serviço de uma estratégia venenosa: a subordinação dos interesses de classe do proletariado a setores burgueses intencionalmente apresentados como “patrióticos, democráticos e progressistas”. É uma narrativa que, em termos de política concreta, abre as portas do curral para lobos em pele de cordeiro.
Obviamente, entender essa questão não significa negar o papel individual que figuras como o Dr. Francia ou os López desempenharam na consolidação e defesa da independência nacional. Significa assumir que os indivíduos respondem a interesses de classe e são o produto de profundos processos estruturais, e não o contrário.
Permitam-me fazer duas reflexões finais.
A primeira é que o marxismo, embora geralmente defenda a autodeterminação nacional das nações oprimidas, não é nacionalista. O marxismo é internacionalista por natureza.
Isso significa que devemos analisar e determinar o caráter de cada guerra separadamente. E, no caso da Guerra contra o Paraguai, defendemos a causa do povo paraguaio e condenamos a Tríplice Aliança não porque sejamos paraguaios ou paraguaias, mas porque foi uma guerra de conquista e extermínio contra uma nação oprimida e mais fraca. Ou seja, os marxistas adotariam a mesma posição se, em lugar do Paraguai, o país invadido e dizimado por nações mais fortes fosse a Bolívia, o Equador, o Chile, o Haiti ou a Irlanda.
A segunda é que, para polemizar com os apologistas da Tríplice Aliança, não é necessário exagerar nada sobre o Paraguai de 160 anos atrás. Nem sobre a população, nem sobre as forças produtivas, ou o grau de desaparecimento da população. Mesmo assumindo o número mais aceito atualmente, que propõe uma população do Paraguai de cerca de 450.000 pessoas, a estimativa mais séria de desaparecimento da população, de 69% do total, continua sendo terrível. O exagero só facilita o debate para os liberais.
Não se trata, insisto, de desmerecer o desenvolvimento material que o Paraguai experimentou antes da guerra, um desenvolvimento que não colocou o país entre as potências da época, mas que foi espetacular em comparação com seu próprio ponto de partida, em 1811. Tampouco se trata de menosprezar o papel dos indivíduos na história. Trata-se de entender que o marxismo não aceita nenhum culto à personalidade. Por ser uma doutrina científica, ele não presta reverência a nada e a ninguém. Isso é stalinismo, não marxismo.
Tradução: Marcos Margarido.
Publicado originalmente no Suplemento Cultural do jornal ABC Color.
[1] Manuel Domínguez [1918]. El alma de la raza, Assunção: Servilibro, 2009, p. 32. Destacado no original.