A árvore que encobre a floresta: uma resposta a Mário Maestri
07/03/2024A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva.
Karl Marx, O Capital, 1867.
Por Ronald León Núñez[1]
Apesar de todas as tentativas de sentenciar sua obsolescência, o estudo e o debate sobre a natureza e a dinâmica da colonização europeia e das formações sociais por ela originadas nas Américas conservam sua importância decisiva para os marxistas.
E não é para menos. De suas conclusões emanam não apenas premissas científicas, mas, acima de tudo, consequências programáticas que orientam a ação política contemporânea. A fecundidade dessa polêmica deve-se ao fato de que, como poucas, ela pressupõe a compreensão de uma totalidade contraditória que expressa a unidade indissolúvel do passado e do presente, da concepção materialista da história e da política.
Isso a torna tanto um ponto de partida ineludível das aproximações teóricas às origens do capitalismo na América Ibérica e às tendências históricas que moldaram estruturalmente nossas sociedades, quanto o alicerce da definição do caráter da presente revolução: sua estratégia e o papel das classes nesse processo.
Mário Maestri, um acadêmico brasileiro que afirma ter “finalizado”, com “viés marxista”, um “vasto projeto de pesquisa sobre a Guerra da Tríplice Aliança”, escreveu uma crítica ao primeiro capítulo do meu último livro[1], dedicado precisamente ao problema da colonização europeia das Américas. O artigo de Maestri, independentemente de seu conteúdo, indica a vitalidade da controvérsia.
A crítica, em termos gerais, é uma ferramenta indispensável para o avanço do conhecimento científico. Entretanto, para que exerça essa função, ela deve se apoiar sobre argumentos sólidos e coerentes não apenas com a lógica do crítico, mas também com a realidade em questão, o conteúdo e o método criticados.
Esse não é o caso do artigo de Maestri, um texto escolástico, carregado de artimanhas retóricas e provocações pueris. Mas este não é seu principal defeito. O problema central está no método que meu crítico emprega. Maestri recorre descaradamente à falsificação das posições alheias, retorcendo-as para que se encaixem melhor nos moldes de suas objeções.
No entanto, pela importância da questão, assumo o debate. Não com a pretensão de “finalizar” a controvérsia, mas com o objetivo –depois de limpar o terreno dos truques confusionistas de Maestri– de esclarecer ainda mais a análise, o método e as conclusões teórico-políticas que compõem, até agora, minha aproximação a um problema extremamente intrincado, em cuja compreensão não é possível avançar por meio da competição de rótulos ou com “palavras mágicas”. Assim, como nos “apontamentos” que apresento no livro[2], irei encará-lo sem esperar pela tábua de salvação de uma “categoria” inquestionável, mas me esforçando em compreender o conteúdo contraditório da totalidade do processo e suas principais tendências.
Três posições basilares
Pode-se dizer que o debate marxista sobre o caráter da colonização ibérica deu origem a três interpretações centrais, a partir das quais derivaram-se profundas diferenças programáticas, principalmente ao redor de se o objetivo da revolução latino-americana deveria ser democrático-burguês ou socialista.
Impossibilitado de estender-me sobre cada uma delas, limitar-me-ei a esquematizar seu conteúdo.
O stalinismo, de acordo com a visão unilinear dos “cinco estágios” (comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo), que supõe uma sucessão obrigatória de modos de produção arbitrariamente aplicados à história de todos os povos, defendia um suposto “passado feudal” da América Latina. Essa tese, na realidade, estava a serviço de justificar historicamente o programa etapista que Moscou promovia nos países coloniais ou semicoloniais: primeiro, a revolução democrático-burguesa “antifeudal”, concebida como uma etapa inevitável em que o proletariado deveria se subordinar à burguesia “progressista” para abrir as comportas ao capitalismo e, assim, fortalecer o peso social do proletariado industrial; somente “depois” de superada esta etapa burguesa é que o programa socialista poderia ser colocado. Essa teoria-programa, com notável influência até hoje nos círculos de esquerda, se concretizou em uma colaboração permanente com supostos setores “democráticos, patrióticos e antiimperialistas” das burguesias nacionais, por meio de incontáveis “frentes populares”, apresentadas como opções progressistas diante de frações “mais reacionárias” dos capitalistas locais e do imperialismo.
André Gunder Frank e outros teóricos da dependência responderam à tese feudal e suas consequências práticas com uma posição igualmente unilateral e equivocada: que a América Ibérica teria sido “capitalista” desde o século XVI[3]. Essa análise certamente ignorava o problema das relações de produção e deformava o conceito de capitalismo, vinculando-o a uma maior ou menor relação com o mercado, ou seja, com o processo de circulação de mercadorias. O erro básico consistia em confundir economia mercantil com o modo de produção capitalista. Em oposição ao programa de conciliação de classes do stalinismo, Frank propunha um programa “puramente” socialista, menosprezando as muitas tarefas democráticas pendentes nas sociedades latino-americanas.
Como sabemos, o cerne do debate residia em estabelecer o conteúdo da colonização, um problema complexo –acima de tudo, por tratar-se de um período histórico de transição em escala global, no qual o arcaico não acabava de morrer e o novo não acabava de surgir e se impor– e repleto de perigos metodológicos, principalmente o da unilateralidade. Isso explica as muitas interpretações que ou universalizam elementos particulares do fenômeno, ou incorrem no erro oposto: negar ou omitir as particularidades em uma pretensa totalidade monocromática.
Nesse “campo minado”, uma terceira posição surgiu no debate. Nahuel Moreno[4] escreveu em 1948 o texto Cuatro tesis sobre la colonización española y portuguesa en América[5] , no qual propõe um todo contraditório: “A colonização tem objetivos capitalistas, obter lucro, mas é combinada com relações de produção não capitalistas”[6]. Formulado de outra maneira: esse empreendimento europeu, apesar de apelar a uma combinação desigual de distintas relações de produção, com predomínio das pré-capitalistas, possuía um sentido histórico ditado pelas tendências gerais da acumulação primitiva de capital na Europa[7].
A posição de Moreno
Vamos desenvolver a posição do trotskista argentino a partir de sua tese principal:
A colonização espanhola, portuguesa, inglesa, francesa e holandesa da América era essencialmente capitalista. Seus objetivos eram capitalistas e não feudais: organizar a produção e as descobertas para produzir lucros prodigiosos e colocar mercadorias no mercado mundial. Não inauguraram um sistema de produção capitalista porque não havia, na América, um exército de trabalhadores livres no mercado. É assim que os colonizadores, a fim de explorar a América de forma capitalista, são forçados a recorrer a relações de produção não capitalistas: escravidão ou semiescravidão dos povos indígenas. Produção e descoberta com objetivos capitalistas; relações escravas ou semiescravas; formas e terminologias feudais (como no capitalismo mediterrâneo), são os três pilares sobre os quais a colonização da América se estabeleceu[8].
Esta tese contém o conteúdo de sua interpretação. Apesar de certas imprecisões, que tanto incomodam Maestri e que, como veremos, o próprio Moreno reconhecerá mais tarde à luz das formulações do intelectual trotskista George Novack, notemos que o primeiro acerto de Moreno é, principalmente, metodológico. Ele não perdeu de vista o fato de que a totalidade condiciona as partes e não o contrário e, consequentemente, proporá que, desde o surgimento do mercado mundial no século XVI, “não há nenhum país no mundo –muito menos os países europeus e americanos– cuja história possa ser interpretada de outra forma que não seja referindo-se, minuto a minuto, segundo a segundo, à história do conjunto da humanidade”. Assim, o estudo da história de um determinado país ou região deverá sempre considerar suas peculiaridades, mas sempre entendendo-as “como parte desse todo que são a economia e a política mundiais”[9].
Acredito que esse enfoque divide águas. Escolásticos como o Sr. Maestri, como debateremos, não compreendem essa lógica e, em desacordo com o marxismo, terminam “colocando a carroça na frente dos bois” ao tentar explicar a totalidade de um problema por meio da soma de suas partes.
Maestri falsifica a posição de Moreno
Em todo caso, a crítica de opções metodológicas e conclusões sempre fez parte de um debate teórico saudável. A matéria é complexa e é normal que suscite muitas interpretações. Outra coisa, como coloquei de início, são as manobras de Maestri.
O professor gaúcho atribui a Moreno e, por consequência, ao meu trabalho, a análise tosca de Frank e do dependentismo, que assegura que nas Américas existiu “capitalismo desde sempre”.
Segundo Maestri, embora com “formas mais ou menos refinadas”, Moreno “generalizou e radicalizou aquela tese para todas as épocas e para as três Américas”. Com isso, ele teria abandonado o método marxista, que parte “…do desenvolvimento das forças produtivas materiais e, sobretudo, de suas relações sociais de produção dominantes”.
Isso é falso, Sr. Maestri. Em primeiro lugar, Moreno não propôs que o caráter da colonização tivesse sido “capitalista”, mas “essencialmente” capitalista. Pode parecer uma diferença sutil, mas essa precisão é importante, já que indica conteúdo e movimento. A ideia central consiste em que a dinâmica do colonialismo ibérico, para além das formas arcaicas presentes na estrutura e superestrutura dos espaços colonizados, esteve intrinsecamente ligada à expansão do mercado mundial dominado pelo capital comercial que, em última análise, criaria as condições para a hegemonia do modo de produção capitalista. Nesse contexto histórico, serão as necessidades desse “mercado internacional em expansão” –ao qual Maestri se refere várias vezes sem lhe atribuir conteúdo histórico, como se fosse uma enteléquia– a totalidade que condicionará os elementos constitutivos de nossas sociedades.
É admissível, sem retorcer o que está escrito, a interpretação de “caráter essencialmente capitalista” como “capitalista desde sempre”, como propõe Maestri? Não, visto que não existe omissão ou ambiguidade sobre essa questão na tese que o comentarista brasileiro critica. Não force as coisas, Sr. Maestri. Basta ler o texto para entender que Moreno nunca definiu como “capitalistas” as relações de produção coloniais. Ele afirma, inequivocamente, que os colonizadores “não inauguraram um sistema de produção capitalista”, dado que, ante a inexistência de um mercado de força de trabalho “livre”, foram “obrigados a recorrer a relações de produção não capitalistas”. Está claríssimo. Nesse caso, em que se baseia Maestri para sustentar que Moreno ignorou a particularidade das formações sociais da Colônia, desprezando assim o predomínio das forças produtivas e das relações de produção, próprio da análise marxista?
Muito pelo contrário. O que Moreno e outros marxistas fizeram foi um esforço para compreender e estabelecer o objetivo dessa produção em um sentido histórico e em escala global.
Essa leitura parte do fato de que as colônias americanas nunca foram unidades econômicas naturais, de estrita subsistência. Desde sua chegada, o conquistador europeu procurou organizá-las como produtoras em larga escala de valores de troca, orientadas para um voraz mercado mundial ou, pelo menos, regional. Esse foi o motor da colonização. A produção para o mercado interno e outros fenômenos endógenos surgirão, como propõe Caio Prado Jr., subordinados à dinâmica do comércio exterior, pautada pela demanda do mercado europeu e pela flutuação dos preços internacionais dos produtos tropicais[10].
Apesar da contradição que implicaram as relações sociais não capitalistas, o “mercado internacional em expansão” –embora nosso crítico abstraia esse elemento de suas conclusões– foi, por sua vez, uma peça fundamental do amplo processo de acumulação primitiva, “uma acumulação –segundo Marx– que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida”[11], dado que, como sabemos, atuou como dissolvente dos resquícios do feudalismo na Europa e de toda sorte de relações sociais arcaicas no mundo. No caso americano, definitivamente, o fato decisivo para determinar o sentido essencialmente capitalista da colonização europeia será a relação colonial, inseparável desse processo de gênese do capitalismo, e não este ou aquele modo de produção nativo.
Portanto, a discussão não está em se existiram ou não particularidades ou se as formações sociais que surgiram nas Américas foram ou não “originais”. É claro que foram. Ninguém questionou a “primazia” da produção na análise ou o fato de que o trabalho juridicamente “livre” tenha sido marginal, provavelmente, até os inícios do século XX. Essa é uma das armadilhas que Maestri arma.
O fundo da questão está em compreender qual era o objetivo da produção colonial –para que se organizava– e tirar todas as conclusões; se o regime de encomendas ou a escravização de indígenas ou africanos, entre outras formas não capitalistas de exploração do trabalho, se subordinavam ou não ao processo de acumulação primitiva de capital controlado pelas metrópoles.
Nesse marco, o capital comercial penetrará nos poros das sociedades coloniais e, por meio de plantadores escravistas, encomenderos, comerciantes etc. –que eram essencialmente capitalistas e, em muitos casos, não só participavam do processo de circulação de mercadorias, mas também investiam em uma produção regida pela demanda do mercado mundial– dominará os produtores diretos –indígenas, mestiços, negros escravizados– dos quais extrairá o excedente social, valendo-se, sobretudo, da coerção extraeconômica, ou seja, apelando a uma violência escancarada.
Maestri não identifica essa imbricação dialética. Assim como Ciro Cardoso, Gorender e outros “modoprodutivistas”, independentemente de suas intenções políticas, ele fixa seu olhar em uma árvore, certamente frondosa, e perde de vista a floresta.
Maestri escreve: “É um disparate propor colonização capitalista da América, desde o Quinhentos, sem produção capitalista, sem burguesia industrial, sem trabalhadores assalariados, sem mercado de trabalho livre, com baixíssimo nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais”.
Sim, isso é um disparate, porque, efetivamente, o capitalismo pressupõe um mercado de trabalho “livre”, baseado na expropriação total dos meios de produção da classe trabalhadora e na transformação da própria força de trabalho em mercadoria. Moreno cometeu erros, mas não esse. Ele nunca propôs tal coisa. Embora também seja verdade, mesmo que isso contradiga os esquemas de nosso crítico, que o capitalismo não surgiu da noite para o dia, com o súbito aparecimento do primeiro operário industrial. Ele se impôs após um processo longo, desigual e combinado, cujos principais impulsos foram a produção orientada para o mercado mundial e o colonialismo. Isso implica que é necessário um esforço teórico para identificar a essência, o conteúdo fundamental e a dinâmica desse período de transição.
Enquanto Gorender e seus discípulos acreditam ter resolvido esse problema, no caso brasileiro, com o rótulo de “escravismo colonial”, vale repassarmos brevemente como Marx e Engels o abordaram.
Marx e Engels contra Maestri
A chamada acumulação primitiva de capital não consistiu apenas na expropriação violenta, com métodos sanguinários, dos produtores diretos. O mercado mundial capitalista e a exploração colonial, como consta no Manifesto, não só foram parte importante desse processo, como constituíram “o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição”[12], abrindo caminho –assumindo a forma de “extermínio, escravização e subjugação da população nativa nas minas”[13]– para a hegemonia do modo de produção capitalista na Europa.
A manufatura e, em geral, o movimento da produção experimentaram um enorme impulso graças à expansão do comércio ocorrida com a descoberta da América e da rota marítima às Índias Orientais […] a colonização e sobretudo a expansão dos mercados até a formação de um mercado mundial – expansão que, então, tornara-se possível e se realizava cada vez mais, dia após dia– despertaram uma nova fase do desenvolvimento histórico […][14].
Em 1848, Marx e Engels desenvolverão essa ideia:
O mercado mundial acelerou enormemente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação. Esse desenvolvimento reagiu, por sua vez, sobre a expansão da indústria; e, à medida que a indústria, o comércio, a navegação e as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e colocando num segundo plano todas as classes legadas pela Idade Média[15].
Engels, por sua vez, foi categórico ao definir a finalidade burguesa da colonização europeia na América. Sustentou que a época do “(…) jovem atraído pelas riquezas das Índias, pelas minas de ouro e prata do México e de Potosí (…) era a época da cavalaria andante da burguesia (…), mas sobre uma base burguesa e com objetivos, em última instância, burgueses”[16].
[…] esse desejo de ir para longe em busca de aventuras para achar ouro, por mais que em princípio fosse realizado sob formas feudais e semifeudais, já era essencialmente incompatível com o feudalismo, que se fundava na agricultura e cujas expedições de conquista visavam essencialmente a aquisição de terras. Além disso, a navegação era uma empresa decididamente burguesa, que imprimiu seu caráter antifeudal também a todas as frotas modernas de guerra[17].
É nítido como o marxismo aborda a questão em sua totalidade e em movimento, sem se perder nos labirintos das “formas”. Os fundadores do socialismo científico, como se pode ler, definiram uma primeira e determinante localização do problema: a descoberta e a colonização da América foram partes fundamentais da acumulação primitiva de capital e cumpriram um papel dissolvente, e não estimulante, do feudalismo na Europa. Por outro lado, eles colocam que, embora a exploração colonial tenha se realizado “em princípio” sob “formas feudais”, seu conteúdo “já era essencialmente incompatível com o feudalismo”. Isso evidencia que a atenção principal de Marx e Engels estava no movimento da coisa e em suas mutações –“já era essencialmente incompatível com…”– e não nas formas. A conquista e a exploração coloniais, em suma, foram empreendimentos com “objetivos, em última instância, burgueses”. Essa é, convenhamos, basicamente a mesma premissa que Moreno proporá: colonização europeia “essencialmente capitalista”, apesar das “relações de produção não capitalistas”. É patente que, de acordo com a teoria marxista, a crítica de Maestri não possui fundamento. Evidentemente, ele tem o direito de discordar de Moreno –e de Marx e Engels–, mas isso não o autoriza a distorcer suas posições.
A abordagem dialética desse problema por Marx fica clara em outra passagem, na qual se refere às colônias que produziam em larga escala para o mercado mundial.
Na segunda espécie de colônias –as grandes fazendas (plantations)– destinadas desde o início à especulação comercial e com a produção voltada para o mercado mundial, verifica-se produção capitalista, embora formalmente apenas, uma vez que a escravatura negra exclui o assalariado livre, portanto o fundamento da produção capitalista. Mas são os capitalistas que fazem o tráfico negreiro. O modo de produção que introduzem não provém da escravatura, mas nela se enxerta. Nesse caso, capitalista e proprietário da terra são a mesma pessoa[18].
Embora Marx defina corretamente a escravidão e o trabalho assalariado como coisas diferentes, fica claro que ele não concebe a escravidão moderna como algo em si mesmo, mas como uma parte anômala de um movimento geral de transição para o capitalismo. A partir dessa lógica, ele classifica o comerciante de escravos como “capitalista” e afirma que o sistema de produção introduzido por esses capitalistas não é “escravista”, mas que a escravidão se “enxerta” em um todo mais amplo. Por isso, ele sentencia: “o capitalista e proprietário da terra são a mesma pessoa”.
O fato de que a relação mercado mundial-modos de produção, embora contraditória, era comandada por um processo com “objetivos, em última instância, burgueses” ou “essencialmente capitalista”, como se prefira, fica ainda mais claro nesta curta passagem escrita por Marx em 1858: “(…) Se atualmente não só chamamos os proprietários de plantações na América de capitalistas, mas se eles de fato o são, isso se baseia no fato de que eles existem como uma anomalia no interior de um mercado mundial fundado no trabalho livre”[19].
Notemos que, para definir as plantações escravistas, o critério decisivo foi sua inserção no mercado mundial, e não a “forma” em que se produzia nelas. Esse último era importante, mas não determinante. Daí que Marx denomine de capitalistas aos plantadores, embora produzissem por meio do trabalho escravo e não do trabalho assalariado “livre”.
Preso em seu próprio esquema, Maestri acusa essa visão de ser “teleológica”. Ele diz: “A produção escravista americana não foi ensejada pela produção capitalista, nem se organizou para sustentá-la, como propõem visões de claro sentido teleológico”. Em outra parte, afirma: “sem o comércio universal, não haveria a ‘grande indústria’. O que não quer dizer que ele se construiu para sustentar a grande indústria!”. Veja bem, Sr. Maestri, ninguém aqui possui uma máquina do tempo que lhe permita escrever desde o século XVI e ninguém afirma que tenha existido algum tipo de desígnio divino pelo qual estivesse escrito que do processo de expansão comercial e colonial derivaria a hegemonia da produção capitalista e da grande indústria. Evidentemente, em meio a esse processo, tal coisa era apenas uma alternativa histórica. O que estamos dizendo é que, em pleno século XXI, temos plenas condições de fazer uma análise do que acabou acontecendo. Não se trata de teleologia, Sr. Maestri, mas de um balanço histórico que inclusive Marx e Engels, em meados do século XIX, julgaram possível e necessário. A conclusão básica foi que, no contexto do processo longo, contraditório e desigual de acumulação primitiva de capital, o “comércio universal” e a “produção escravista americana”, entre outras formas de exploração pré-capitalistas, foram pré-requisitos indispensáveis, foram “pontos de partida” para a posterior imposição da “produção capitalista e da grande indústria”. Isso não é “teleologia capitalista”, Maestri, é um balanço histórico apoiado em fatos!
Ainda assim, obcecado com a particularidade de cada colônia, Maestri repete: “É a ‘estrutura interna das economias colônias’ que precede a dominância do capitalismo (…)”. Sim, isso é óbvio. Mas a estrutura interna das colônias não precede o capital comercial nem o mercado mundial, cujo caráter e dinâmica condicionaram a constituição de nossas formações sociais, ou será que o escravismo nas Américas surgiu do nada ou brotou das árvores, desvinculado do processo geral de surgimento da economia mundial?
Opino que é Maestri quem deve prestar atenção à ordem dos fatores na análise histórica. De acordo com o marxismo, a gênese do processo que estamos discutindo não está nas “estruturas internas coloniais”, mas, como citamos, na “expansão do comércio ocorrida com a descoberta da América e da rota marítima às Índias Orientais (…dado que) a colonização e sobretudo a expansão dos mercados até a formação de um mercado mundial (…) despertaram uma nova fase do desenvolvimento histórico […]”[20]. Foi essa “nova fase” que impulsionou de forma colossal “a manufatura e, em geral, o movimento da produção”[21]. O marxismo é claro. Foi o mercado mundial que revolucionou o comércio, a navegação, as comunicações terrestres, progressos que, a longo prazo, propiciaram a expansão da indústria e o crescimento da burguesia[22].
O cerne da questão é que, durante um longo período, até o triunfo definitivo do capitalismo e da grande indústria, o capital comercial explorou, sem escrúpulos, todo tipo de relações sociais não capitalistas, entre elas a escravidão africana. Maestri não entende esse movimento contraditório, mas com um sentido “decididamente burguês”. Referindo-se às características do capitalismo e à importância das relações sociais de produção na análise, nosso crítico escreve que: “para o método marxista de interpretação, não importa o que se faz, mas como se faz”[23]. Observe, Sr. Maestri, que, em termos históricos, a lógica do capital nunca expressou grande preocupação com o “como” e utilizou a seu favor, sem misericórdia, todas as formas possíveis de exploração, arcaicas ou não, para produzir em grande escala e extrair excedente social dos explorados. Em nenhum lugar existiu nem existirão formações sociais “puras”. A unidade contraditória entre o velho e o novo é permanente. Entre outras coisas, isso explica por que, em pleno século XXI e sob o domínio indiscutível do capitalismo-imperialista, há mais pessoas escravizadas no mundo do que em qualquer outra época da história[24]. Os fatos não corroboram a ideia de um capitalismo cuidadoso com o “como” e com as “formas”, como sugere o esquema de Maestri.
Moreno e Frank: dois programas diferentes
Esperamos ter demonstrado que a tentativa de associar nossa posição à visão e à posição de Gunder Frank e do dependentismo é pueril. Maestri omite, convenientemente, que o próprio Moreno não hesitou em criticar Frank e sua corrente, dizendo que seu esquema, embora oposto à tese stalinista, era politicamente “tão perigoso como o anterior [a tese feudal]”[25].
George Novack, um intelectual do SWP dos EUA, uma organização que então mantinha relações estreitas com a corrente morenista, fez a mesma crítica: “Espanha e Portugal criaram no Novo Mundo formas econômicas que tinham um caráter combinado. Uniam as relações pré-capitalistas às relações de comércio, subordinando-as, portanto, às exigências e aos movimentos do capital mercantil”[26].
Moreno reivindicou essa formulação, reconhecendo-a inclusive mais precisa que a sua, elemento que Maestri simplesmente “esquece”: “ele dá um nome mais preciso –escreveu Moreno– ao que chamo de ‘objetivos capitalistas’ em minha análise, capital mercantil, mas insiste no mesmo que minha tese, no caráter não capitalista das relações de produção”[27].
Contudo, desde uma perspectiva marxista e não comentarista ou contemplativa, a diferença intransponível entre Moreno e Frank sempre esteve no programa derivado de uma ou outra visão do passado colonial americano. Frank, seguindo sua tese de uma América “capitalista desde sempre”, estabeleceu um programa “puramente” socialista, omitindo ou menosprezando as tarefas democráticas. Moreno opunha ao esquematismo de Frank o programa da revolução permanente, conclusão decisiva de seu estudo sobre a colonização europeia:
As teses da revolução permanente não são as teses da mera revolução socialista, mas da combinação das duas revoluções, democrático-burguesa e socialista. A necessidade dessa combinação surge inexoravelmente das estruturas socioeconômicas de nossos países atrasados, que combinam distintos segmentos, formas, relações de produção e de classes. Se a colonização foi capitalista desde o início, não cabe mais que a revolução socialista na América Latina e não uma combinação e subordinação da revolução democrático-burguesa à revolução socialista[28].
Essa diferença, a mais importante de todas, também é omitida por Maestri.
Espero ter demonstrado que Moreno, sem negar a particularidade das formações sociais surgidas da conquista europeia, evidenciou a existência de uma combinação desigual de relações de produção, embora com predomínio das pré-capitalistas, e, no mesmo ato, propôs que essas estruturas estiveram, contraditoriamente, a serviço do longo e desigual processo de conformação do capitalismo em escala mundial, o elemento totalizador que condicionava “em última instância” o conteúdo das particularidades regionais.
Assim, o que Maestri chama de “hibridismo” e de uma suposta contradictio in terminis, revela, no final das contas, uma incompreensão da lógica dialética, que concebe a realidade em perpétuo movimento, na qual cada fenômeno, intrinsecamente contraditório, contém em si mesmo a sua própria negação –razão pela qual foi possível que relações sociais não capitalistas servissem como motor para a subsequente hegemonia das relações capitalistas– e encontra-se atravessado por uma luta permanente entre o novo e o velho, o nascente e o ultrapassado, até sua transformação em algo distinto por meio de saltos qualitativos.
Sob essa perspectiva, como proponho em meu livro, a disjuntiva, colocada no sentido extremo e puro, entre colonização “feudal” (liberalismo e stalinismo) ou diretamente “capitalista” (Frank e outros) é falsa e, portanto, enganosa.
Admitindo que se trata de um debate aberto e permanente, considero que a melhor abordagem consiste em aproximar-se ao conteúdo essencial e ao movimento dialético desse processo histórico, sem tentar encapsulá-lo em um rótulo. As definições são sempre um “mal necessário”. Embora sejam indispensáveis para sistematizar o estudo de um objeto, ao mesmo tempo elas expressam a parte mais pobre da análise, já que necessariamente comprimem e “congelam” em uma ou duas palavras incontáveis elementos da realidade, conceitos e discussões que possuem uma riqueza própria. Há intelectuais que, apaixonados por uma categoria “polivalente”, tropeçam e transformam a ferramenta em um fim em si mesma. Maestri é um deles.
Moreno tentou aproximar-se ao conteúdo em vez de reivindicar a “paternidade” de um “novo” conceito. A síntese que ele propôs explica tanto o caráter contraditório das relações de produção na América colonial quanto seu nexo e seu papel na economia mundial nascente. Sua lógica, repito, está baseada essencialmente na de Marx e Engels.
Pobre Copérnico!
Mário Maestri se escandaliza com minha crítica ao conceito de “modo de produção escravista colonial” desenvolvido por Jacob Gorender em 1978[29], embora proposto anteriormente por Ciro Cardoso.
Ele argumenta que Gorender teria resolvido o problema da definição das relações sociais de produção originadas no Brasil colonial e, ao fazê-lo, “superado” o tradicional “impasse feudalismo-capitalismo” que há décadas divide o marxismo latino-americano. Sua admiração por Gorender o leva a afirmar, sem muita cautela, que a “interpretação estrutural da formação social brasileira” do ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) representou, atenção, nada menos que uma “revolução copernicana nas ciências sociais brasileiras”[30].
O historiador britânico E. H. Carr fez uma recomendação metodológica que considero extremamente necessária: “Estude o historiador (…) Quando você lê um trabalho de história, procura saber o que se passa na cabeça do historiador”[31]. Com isso em mente, indaguemos quem é aquele gênio incompreendido a quem Maestri atribui tal façanha intelectual.
O próprio Maestri responde:
Militante comunista desde a juventude, Jacob Gorender rompera com o PCB e participara da fundação do PCBR, em 1968. Pensador erudito e profundo conhecedor do marxismo, insatisfeito com as análises do passado brasileiro e de ruptura com o reformismo-stalinismo da qual participara sem uma real crítica político-metodológica, empreendeu investigação estrutural da formação social brasileira, a partir da segunda metade dos anos 1960.
É lamentável que alguém que em algum momento tenha militado nas fileiras do trotskismo se refira de forma tão elogiosa e considere “comunista” e “profundo conhecedor do marxismo” um dirigente histórico do stalinismo que, entre outras funções, foi professor dos “Cursos Stalin” do PCB na década de 1950, um programa de deformação política que, nas palavras do próprio Gorender, “consistia em transmitir um cânone doutrinário uniformizado, que vinha de Moscou e do Cominform”, admitindo que “(…) para nós, naquela época, era a última palavra do maior gênio da humanidade. Tratava-se de fortalecer nos militantes a fidelidade à mãe-pátria socialista, cuja defesa constituía princípio incondicional, incompatível com a mínima crítica”[32]. Maestri revela que não aprendeu algo básico em seus anos no trotskismo: marxismo e stalinismo são opostos.
Nos anos noventa, Gorender acabaria se filiando ao PT brasileiro. O duplo processo de restauração capitalista por parte da burocracia soviética e a subsequente derrubada, pelas mãos do proletariado e das massas da ex-URSS e do Leste Europeu, do aparato mundial do stalinismo entre 1989 e 1991[33], deixou nosso “profundo conhecedor do marxismo” em tal estado de orfandade e ceticismo que terminou rompendo abertamente com o socialismo científico.
Em seu último trabalho importante, “Marxismo sem utopia”, publicado em 1999, Gorender se propôs a “examinar o cerne da obra de Marx e Engels” com o objetivo de desvendar o “caráter utópico de toda a construção marxiana ou, ao menos, de aspectos dela”[34] e, a partir daí, revisar seus postulados essenciais. De fato, a base do “fracasso das construções sociais inspiradas no marxismo”[35] no século XX residiria, segundo o autor baiano, nos supostos elementos utópicos e teleológicos do projeto marxista, que teria idealizado, em especial, a natureza do sujeito social capaz de superar o capitalismo. “A influência da propensão utópica em Marx e Engels pode ser constatada na sua abordagem do proletariado”[36], afirmou Gorender, uma vez que a realidade teria demonstrado ser uma classe “ontologicamente reformista”[37] e, por isso, incapaz de liderar a luta pelo socialismo. Em seu lugar, ele propôs um novo “sujeito revolucionário”, nada menos que a “classe dos assalariados intelectuais”. Longe de romper com o “reformismo-stalinismo do qual participara…”, como propõe Maestri, Gorender renegou definitivamente o marxismo.
Em outro texto, Maestri reconhece que tanto a “rendição tardia” de Gorender quanto sua ruptura com “…algumas estruturas profundas do credo stalinista –revolução em um só país [sic]…” foi “parcial”. Ainda assim, ele não hesita em considerá-lo “o mais criativo marxista revolucionário brasileiro”[38]. Essa enorme confusão teórico-política demonstra, para dizer o mínimo, o ecletismo de Maestri, que uma vez mais demonstra não haver compreendido a fundo o caráter absoluta e irreversivelmente contrarrevolucionário do stalinismo.
Contudo, embora distante da suposta revolução no pensamento social que Maestri propõe, não tenho dúvidas de que O escravismo colonial é uma contribuição profunda e coerente que não pode ser ignorada no debate. É por esse motivo que dedico “algumas poucas páginas” de meu livro para criticá-lo, algo que incomoda Maestri, que também gosta de exigir de seus críticos a bibliografia exata com a qual devem questioná-lo. Minha intenção, no entanto, nunca foi empreender alguma espécie de “anti-Gorender” ou algo semelhante, mas questionar sua lógica e suas teses essenciais.
Maestri, basicamente, me acusa de desprezar o estudo dos modos de produção coloniais, que eu supostamente dissolvo em uma simplificação circulacionista. Contra o método que me atribui, ele reivindica o método e o conceito defendidos por Gorender:
Em O escravismo colonial, Jacob Gorender explica que, no Brasil, nas ilhas do Caribe etc., o confronto de duas formações sociais diversas, a feudal-mercantilista ibérica, dominante, com a autóctone, dominada, não produziu uma transposição da primeira ou um simples amalgama entre as duas. Mas sim, ao contrário, dera lugar a uma realidade singular — um modo de produção de características “novas”, “antes desconhecidas na história humana”. Daí a proposta de um “modo de produção historicamente novo”.
Evitemos falsas polêmicas. Nunca questionei o caráter original nem menosprezei as particularidades das formações econômico-sociais da América colonial, incompreensíveis com a lógica mecanicista e eurocêntrica dos “cinco estágios” proposta pelo stalinismo. Se Maestri tivesse lido com atenção –ou de boa-fé – o primeiro capítulo de meu livro, ele teria se deparado com essa afirmação categórica:
É a relação colonial – e o grau de desenvolvimento das forças produtivas da metrópole, que no caso da Península Ibérica transitava do feudalismo decadente ao capitalismo que, por sua vez, não conseguia impor-se definitivamente – que será imposta em um espaço particular. Consequentemente, as relações de produção originadas naquele espaço colonial – com determinadas condições climáticas, geográficas, força de trabalho mais ou menos disponível, modos de produção preexistentes, cultura e costumes próprios etc. – adquirirão as mais diversas características, híbridas e combinadas, mas inseridas no processo geral da acumulação primitiva de capital na Europa[39].
Tampouco está em debate que “(…) nessa combinação de formas de produção, a predominante, no Brasil, nas Antilhas, nas Guianas, no Sul dos EUA, etc., foi a escravista”[40]. Isso também está escrito, Sr. Maestri.
Em suma, não está em discussão a pertinência da preocupação de Ciro Cardoso em reconhecer “a especificidade dos modos de produção coloniais na América (…)”[41] .
O que estou discutindo é a lógica, a proposta e as consequências políticas, sempre com um enfoque marxista, de dotar essas especificidades de uma falsa autonomia em relação ao “processo geral de acumulação primitiva de capital na Europa” ou, em outros termos, em relação ao processo desigual de desenvolvimento do capitalismo mundial. A universalização do particular é oposta ao método de análise marxista.
É justo reconhecer o acerto de Cardoso e, embora tardiamente, de Gorender, ao criticar o dogma stalinista dos “cinco estágios”. Eles argumentaram, corretamente, que tanto o desenvolvimento das forças produtivas quanto os modos de produção na América não seguiam –e nem poderiam seguir– a “escadinha” europeia. No entanto, Gorender, em sua pressa em negar a dicotomia “passado feudal-passado capitalista”, esforçou-se para elaborar uma “teoria geral”[42] construída a partir de uma apreensão fragmentada da totalidade e, com isso, estabeleceu uma relação formal, não dialética, entre o desenvolvimento do capitalismo europeu e o caráter das formações sociais nos países de origem colonial.
Gorender expôs seu raciocínio de forma inequívoca. O escravismo, para ele, é a categoria central, o “ponto de partida” para compreender o Brasil colonial:
Tal diferença consiste em que [Fernando] Novais e [João Manuel] Cardoso de Mello partem do sistema colonial mundial como totalidade que determina o conteúdo da formação social no Brasil, ao passo que eu inicio minha análise com o modo de produção escravista colonial, a cuja dinâmica própria atribuo uma determinação fundamental[43].
Em oposição à conhecida definição de Caio Prado Jr., ele propôs que a colônia possuía um “sentido” intrínseco. Gorender inverteu, assim, a lógica marxista e argumentou, sob os aplausos de Maestri, que “as relações de produção da economia colonial precisam ser estudadas de dentro para fora”[44].
Essa lógica o levou a interpretar que a estrutura econômica interna do atual Brasil teria alcançado tamanha autonomia, que engendrou um modo de produção original, qualitativamente distinto daqueles que haviam surgido antes:
Impõe-se, por conseguinte, a conclusão de que o modo de produção escravista colonial é inexplicável como síntese de modos de produção preexistentes, no caso do Brasil […] O escravismo colonial emergiu como um modo de produção de características novas, antes desconhecidas na história humana[45].
Maestri apela a um jogo de palavras para opor “características novas” a “completamente novas”, evitando ir ao conteúdo do problema. Não pretendo entrar nesse jogo estéril. Basta dizer que, se o conteúdo da ideia é que o “escravismo colonial” foi um modo de produção específico com características “antes desconhecidas na história humana”, não é abusivo concluir que o autor está propondo a aparição de algo completamente novo para a humanidade.
O acadêmico gaúcho se defende dizendo que o estudo das relações de produção “de dentro para fora” significaria “partir do concreto –meios de produção, relações de produção, modo de produção, formação social”. Obviamente, o anterior é algo “concreto”. Essa não é a discussão. A questão é que se trata da concretização de uma particularidade inserida e condicionada pela universalidade do processo de gênese, desenvolvimento e subsequente imposição hegemônica do modo de produção capitalista na Europa, mas também nos espaços coloniais. O problema não está em considerar “o concreto”, mas em pretender transformar a parte em totalidade, atribuindo-lhe, como o próprio Gorender admite, “uma determinação fundamental”.
Para demonstrar a especificidade do “escravismo colonial”, Maestri passa a explicar-nos as diversas formas de escravidão na história, para concluir que:
O modo de “produção escravista colonial” tinha grandes identidades com os vigentes nas sociedades greco-romana, já que era “escravista”. Mas possuía, também, diversidades substanciais, ou “leis específicas” tendenciais, que determinavam ser ele modo de produção “historicamente novo”, dependente do mercado colonial –daí a sua adjetivação de “colonial”.
Esse parêntese é desnecessário, uma vez que são evidentes as diferenças entre o escravismo da Antiguidade e o moderno, fundamentalmente porque um e outro se baseavam em diferentes graus de desenvolvimento das forças produtivas.
No entanto, consideradas em seu conjunto, ambas as formas de trabalho forçado mantinham uma característica principal, comum a toda sociedade escravista: o escravo era ao mesmo tempo capital fixo e mercadoria; o mercado de trabalho era abastecido por roubos que “constituem pura e simplesmente atos de apropriação da força de trabalho por meio de violência física descarada”[46].
Sob essa perspectiva, é abusivo apresentá-lo como “desconhecido” pela humanidade. Tal afirmação não passa de uma tentativa forçada de justificar um grau de autonomia tal que a “determinação fundamental” seria dada pela originalidade do escravismo colonial, e não pela economia mundial.
O crasso erro metodológico de Cardoso-Gorender-Maestri radica em superdimensionar o fenômeno, perdendo de vista a totalidade e universalizando a particularidade, algo que não possui nada em comum com o marxismo e, ao contrário, aproxima-se perigosamente do método pós-moderno.
Embora apontem que o “escravismo colonial” era “dependente” do “mercado internacional”, ou que o “mercado colonial” constituía o “pressuposto” desse modo de produção, esses elementos são logo abstraídos de suas conclusões. O problema radica em que, como criticamos acima, o conteúdo e a dinâmica desse tal “mercado internacional” nunca são definidos e, em suma, aparecem como algo separado do processo de acumulação capitalista global.
A tal ponto é assim, que Maestri chega ao cúmulo de rejeitar minha afirmação de que “(…) não se pode explicar a ‘estrutura interna’ das economias coloniais americanas por fora desse processo de expansão do sistema capitalista”.
Gorender-Maestri acabam menosprezando a complexa relação metrópole-colônia e o vínculo com o mercado mundial dominado pelo capital comercial. Escapa-lhes o fato de que o grosso da produção extraída das colônias americanas, com todas as suas particularidades, não era majoritariamente realizada nas colônias, mas fora delas, uma vez que estavam submetidas às metrópoles e, por essa via, à mercê do desenvolvimento desigual do capitalismo europeu.
O escravismo moderno –com sua odiosa brutalidade–, nesse contexto, era uma necessidade econômica derivada tanto do interesse em expandir a produção para um mercado que havia deixado de ser apenas “europeu”, quanto da escassez de mão de obra nativa nas Américas. Foi um processo similar à “segunda servidão europeia” de que falava Engels[47]. O trabalho forçado, sob distintas formas, se transformou em algo imperioso no processo de acumulação primitiva de capital.
Marx aponta esse papel econômico do escravismo moderno como base da indústria moderna:
A escravidão é uma categoria econômica como qualquer outra. Portanto, tem também seus dois lados. Deixemos o lado mau e falemos do lado bom da escravidão. Não é necessário dizer que estamos tratando apenas da escravidão direta, a dos negros no Suriname, no Brasil, nos estados do sul da América do Norte. A escravidão direta é o fundamento da indústria burguesa, assim como as máquinas, o crédito etc. Sem escravidão, não teríamos o algodão; sem o algodão, não teríamos a indústria moderna. Foi a escravidão que valorizou as colônias; foram as colônias que criaram o comércio universal; e o comércio universal é a pré-condição da grande indústria. Por isto, a escravidão é uma categoria econômica da mais alta importância. […] Os povos modernos conseguiram apenas disfarçar a escravidão em seus próprios países, mas impuseram-na sem disfarce no Novo Mundo[48].
Como vimos, é óbvio que “…a produção escravista americana não foi ensejada pela produção capitalista, nem se organizou para sustentá-la…”, seguindo uma espécie de “plano diretor”, mas esta é uma visão estática do processo. A história não se deteve no século XVI ou XVII. Em outras palavras, o que Marx coloca em Miséria da filosofia é que a Europa Ocidental impôs a escravidão moderna para impulsionar a produção em larga escala de valores de troca para alimentar o comércio universal e, com isso, acabou incentivando o desenvolvimento da indústria e do capitalismo em seus países.
Maestri, perdido no reino das particularidades, não compreende que a expansão comercial e colonial europeia será o ponto de inflexão histórico, o “ponto de partida”, o momento crucial em que o modo de produção capitalista, ainda em estado germinal, mas representando o “novo”, encontrará o contexto propício em que, tendencialmente, ampliará as suas condições de existência, penetrando nos poros das sociedades conquistadas e, paulatinamente, destruindo as relações de produção arcaicas, independentemente de tê-las utilizado em seu próprio benefício por um período mais ou menos prolongado.
Marx coloca de modo explícito as condições que marcaram “a aurora da era da produção capitalista”:
A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o globo terrestre como palco. Ela é inaugurada pelo levante dos Países Baixos contra a dominação espanhola, assume proporções gigantescas na guerra antijacobina inglesa e prossegue ainda hoje nas guerras do ópio contra a China etc.[49]
Se Maestri abandonasse seu método e analisasse todo esse movimento “de fora para dentro”, perceberia que “a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles negras” e a própria escravidão moderna no Brasil e em outras partes do mundo não foram nenhuma “determinação fundamental”, mas sim que existiram, como propõe Marx, “como uma anomalia no interior de um mercado mundial fundado no trabalho livre”.
A lógica de Gorender-Maestri leva-nos a um beco sem saída. Se fôssemos coerentes com a análise “de dentro para fora” e com a atribuição de uma “determinação fundamental” à estrutura interna de cada espaço colonial, chegaríamos a uma fragmentação analítica tão absurda que teríamos que falar de “regime de encomendas colonial”, “mita potosina colonial”, “yanaconazgo colonial”, “sistema de enganches por deudas colonial”, “modo de produção despótico-tributário colonial”, “modo de produção despótico-aldeão colonial” e assim por diante, até “esgotar” as mais variadas particularidades e suas nuances.
Por muito que desagrade a Maestri, Gorender não “superou” nenhum impasse nem resolveu nenhuma polêmica. Lamentavelmente, o problema é demasiado complexo para ser resolvido por uma “adjetivação”, por mais “criativa” que seja.
Uma “revolução social” no Brasil?
Preso em seu esquema de que o modo de produção “escravista colonial”, por si só, determinava a dinâmica sociopolítica brasileira, Gorender propõe que “a Abolição foi a única revolução social jamais ocorrida na História do nosso País”[50], uma vez que acabou com a formação social escravista e representou uma “profunda transformação na estrutura econômica”[51].
Contudo, o próprio Gorender admite que o latifúndio permaneceu intacto e que “a mais elevada forma de luta dos escravos consistiu na fuga das fazendas, que se deu sobretudo em São Paulo (…)”, fato que os “incapacitou” para “a luta pela posse da terra, apesar de manifestarem aspiração nesse sentido”[52].
Não questiono que a abolição jurídica da escravatura negra em 1888 tenha “desembaraçado” a “difusão das relações de produção capitalistas”[53], como aponta Gorender, e nem que, nas palavras de Maestri, tenha dado “(…) o golpe final em produção dominante por mais de três séculos, dando lugar a diversas relações de produção apoiadas no trabalhador livre”. Embora extremamente tardia, foi uma mudança muito progressiva. Isso está claro.
O problema consiste em determinar se a forma como essa mudança ocorreu realmente implicou “… a única revolução social jamais ocorrida na História…” do Brasil, como propõe Gorender e repete Maestri.
Pois bem, vamos colocar à prova essa tese.
Sabendo que a definição de “revolução” é polêmica, minha referência será a de Trotsky:
A característica mais indubitável de uma revolução é a interferência direta das massas nos eventos históricos. […] naqueles momentos cruciais, quando a velha ordem não se torna mais resistente às massas, estas rompem as barreiras que as excluíam da arena política, derrubam seus representantes tradicionais e criam por sua própria iniciativa o ponto de partida de um novo regime […] A história de uma revolução é para nós, antes de tudo, a história da entrada violenta das massas no domínio de decisão de seu próprio destino[54].
Por outro lado, assumo que toda “revolução social” possui um caráter de classe, determinado pela época histórica e pela natureza de suas tarefas, bem como um sujeito social revolucionário. Suponho que o Sr. Maestri coincida com esta premissa.
No Brasil de 1888, “então um país pré-nacional”, como descreve Maestri, não poderíamos conceber a ideia de uma revolução proletária. Não tenho dúvidas de que meu crítico pense o mesmo.
Nesse caso, a “revolução social” abolicionista de que fala Gorender só poderia se tratar de uma revolução democrático-burguesa, suficientemente poderosa para concretizar uma “profunda transformação na estrutura econômica”[55].
No final do século XIX, a história já tinha mostrado que uma revolução democrático-burguesa antiescravista admitia a possibilidade de que os próprios escravizados, o principal setor social explorado e oprimido, se elevassem à condição de sujeito revolucionário. A questão é: foi esse o caso do processo que derivou na suscinta Lei nº 3.353 de 13 de maio de 1888, assinada pela princesa Isabel, e que aboliu legalmente a escravidão no Brasil?
Aconteceu algo comparável à “entrada violenta das massas no domínio de decisão de seu próprio destino”? Pode-se dizer, Sr. Maestri, que o 13 de maio foi produto de algo pelo menos similar a uma revolução negra, social e radical, como o caso haitiano? Ou talvez tenha ocorrido, sem que saibamos, algo de menor escala, mas similar à guerra civil estadunidense, na qual os escravizados, embora confinados aos limites do exército da União, participaram massivamente de uma sangrenta luta armada que, a certa altura, se tornou abolicionista?
Os fatos, infelizmente, não permitem tal afirmação. Nem Gorender nem Maestri chegam a tal extremo. O primeiro, como mencionamos, reconhece que “a mais elevada forma de luta dos escravos foi a fuga das fazendas…”, um movimento audaz e importante, mas limitado, se o que se pretende demonstrar é uma “revolução social” acaudilhada pelos próprios escravizados. O segundo constata que: “…a classe dos trabalhadores escravizados, principal agente dessa transformação, estava, havia décadas, em forte regressão”.
Em suma, nos propõem uma “revolução social” jamais vista na história brasileira, mas que simplesmente não encarou o problema da terra e nem teve os escravizados –que segundo o próprio Maestri estavam “havia décadas, em forte regressão”– como sujeito social.
Nesse cenário, persiste o interrogante de qual classe social liderou a “revolução social” de Gorender.
Se toda revolução necessita de um sujeito social e, como concordamos, os próprios escravizados não o foram, esse papel só pôde caber à burguesia abolicionista, ou, ao menos, a um setor dela.
Embora um Maestri enfurecido, quase sem argumentos, apele para uma provocação tão baixa como me associar às teses dos escravagistas e de Gilberto Freyre, que defendem a ideia de uma suposta “passividade histórica do negro” no Brasil, é necessário reafirmar: a fixação no “escravismo colonial” como “determinação fundamental” induziu Gorender a deixar passar a ideia de que a burguesia abolicionista brasileira tenha desempenhado um papel revolucionário na história nacional. Maestri, recuando aos tropeços, tenta matizar a questão dizendo que Gorender falou de uma “transição revolucionária” ou “transições intermodais”, quando, textualmente, afirma a existência de uma “revolução social”.
Contudo, Maestri não parece disposto a questionar essa afirmação de Gorender. Pelo contrário, na sua imaginação, qualquer um que aponte os “limites” do processo institucional de abolição ou se recuse a aceitar a “revolução social” do ex-dirigente do PCB estaria abraçando “visões fora da história” e aderindo às teses racistas de Gilberto Freyre e de outros escravagistas.
Quanto ao sujeito social, o próprio Gorender se pergunta: “que papel teve a burguesia em transformações de tão grande envergadura?”, para logo destacar o papel da “…militância abolicionista dos comerciantes e industriais”. Posteriormente, ele conjectura que, embora a burguesia bancária tivesse sido hostil ou temerosa em relação à abolição, “pode-se supor, pela lógica dos interesses de classe, que a burguesia industrial deveria assumir uma atitude oposta”[56], ou seja, favorável à “revolução social” que ele propõe.
É óbvio que, como escreve Maestri, “caso uma facção da burguesia industrial-manufatureira tenha apoiado o abolicionismo, ela teve, sim, ‘papel progressista’ ainda que insignificante”. O problema é que o sujeito social de uma “revolução social”, a proposta de Gorender, não cumpre “apenas” um papel progressista, muito menos “insignificante”; cumpre um papel revolucionário. Não vamos brincar de esconde-esconde, Maestri: uma coisa é cumprir um papel progressista, outra bem diferente é um papel de sujeito revolucionário.
Mas os problemas da tese da “revolução social” de 1888, pelo menos nos termos propostos por Gorender-Maestri, não param aí. Se realmente houvesse existido uma revolução social de natureza democrático-burguesa-abolicionista, que tivesse extirpado a escravidão, seria de esperar-se que o capitalismo que emergisse desse processo carregasse poucos ou nenhum resquício do “modo de produção escravista colonial” ou, como escreve Gorender, de outras “formas de exploração já esgotadas”[57]. Se admitíssemos por alguns minutos a tese do ex-dirigente stalinista, deveríamos nos perguntar: se uma revolução democrático-burguesa de caráter social tivesse realmente acontecido no século XIX, quais seriam as tarefas democráticas pendentes ou inacabadas que deveriam ser incorporadas pelo programa da revolução socialista brasileira? De acordo com o esquema de Gorender, seria legítimo presumir que poucas ou nenhuma. Esta conclusão, consistente com a (falsa) ideia de uma “revolução social” jamais vista no Brasil, contém o perigo de um profundo erro programático e político no presente.
Por outro lado, se assumirmos a premissa de que o Brasil foi sacudido, em 1888, por uma revolução social abolicionista, fica muito difícil explicar o contexto calamitoso, para os ex-cativos, do período pós-abolição, em que foram abandonados à sua sorte, sem terras, emprego, habitação digna, educação formal etc. É claro que nenhuma revolução burguesa, nem mesmo as mais radicais, foi feita em nome dos despossuídos e oprimidos. Contudo, se tivesse ocorrido uma espécie de revolução negra vitoriosa, não seria descabido esperar que ela implicasse um grau superior de conquistas materiais e democráticas que, embora efêmeras, deixariam suas marcas na sociedade brasileira.
A tese de Gorender, apesar da boa intenção de atribuir “centralidade” aos escravizados na história, não é condizente com os fatos e é, portanto, incoerente, inconsistente e falsa.
Porque uma das razões da pesada herança de racismo que corrói a sociedade brasileira e justifica a política permanente de extermínio de sua população negra tem suas raízes na forma como se deu a abolição, que, lamentavelmente, não significou nenhuma revolução.
Sr. Maestri, não se trata de negar a enorme importância das lutas dos escravizados por sua liberdade. Não tente resolver as diferenças com provocações infantis. O papel da resistência negra desde o século XVI é inquestionável: fugas, sabotagens, suicídios, rebeliões armadas etc. É inaceitável, portanto, o mito racista de que a abolição foi “pacífica” e que ocorreu devido à benevolência de uma princesa branca. Como afirmo em outro trabalho: “[por volta de 1888…] a escravidão estava em processo de desintegração devido a uma combinação de fatores: a pressão internacional pelo fim do tráfico negreiro e as incontáveis lutas dos próprios escravos, que a corroíam por dentro…”[58].
O medo de que a abolição despertasse o “demônio da revolução”, ou seja, que desembocasse em um questionamento popular não só da própria escravidão, mas também da estrutura latifundiária e das penúrias derivadas da sociedade de classes, mobilizou importantes setores proprietários. A certa altura, ante a profunda crise do escravismo, boa parte das classes dominantes relocalizou-se e passou a defender a abolição com o critério pragmático de “façamos nós mesmos, antes que eles o façam”… Justamente por causa da resistência negra, Sr. Maestri!
Foi justamente o temor aos “inconvenientes econômicos pelos quais passaram as Antilhas inglesas e francesas (…aos) horrores de São Domingos…”, como escreveu Joaquim Nabuco, que imprimiu ao tardio abolicionismo brasileiro um caráter não apenas conservador e conciliatório, mas preventivo.
A burguesia brasileira, como tantas vezes na história nacional, pôde antecipar-se a uma potencial revolução social negra e, com maiores ou menores sobressaltos, garantiu uma transição gradual, institucional e distante de qualquer turbulência social de consequências imprevisíveis. “É assim –escrevia Nabuco– no Parlamento e não nas fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade”[59]. Esta foi a via, reformista e gatopardista, que se impôs. Uma solução que contou, ainda, com a bênção do imperialismo britânico. Não uma “revolução social”, como Gorender romantiza ante a exaltação de Maestri.
Em suma, a força crescente da luta dos escravizados e o perigo de que a abolição ocorresse “nas fazendas ou quilombos do interior” levou a que, preventivamente, os setores burgueses abolicionistas mais fortes redobrassem seus esforços em busca de uma abolição “controlada” desde cima. Estas frações proprietárias, à sua maneira, desempenharam um papel progressivo no contexto do século XIX, mas não revolucionário. Em outras palavras, houve resistência e todo tipo de lutas heroicas por parte dos cativos, mas, lamentavelmente, estas não desembocaram num processo de revolução social, muito menos com protagonismo negro e métodos violentos.
Assim, a forma extremamente tardia e “controlada” em que se deu a abolição impediu qualquer reparação e restringiu os direitos democráticos básicos. Não garantiu absolutamente nada aos escravizados libertados em 1888. Não houve nenhuma política de concessão de terras, emprego ou moradia. Nada. A burguesia conseguiu controlar o processo e encaminhá-lo para uma transição gradual, sempre com o apoio do imperialismo britânico. A hipótese de que, no caso de uma “revolução social”, a inserção dos ex-cativos no capitalismo semicolonial brasileiro teria sido, pelo menos, quantitativamente diferente, não é “demagogia”, como escreve Maestri. Demagogia é pregar a existência de uma revolução social que nunca ocorreu. O combate ideológico à tese da “passividade” do negro na história brasileira, embora justo e necessário, não autoriza a distorcer os fatos. Algo assim, além de nos impedir de extrair com precisão as lições da história, deforma o programa e a política no presente.
Desenvolvida até suas últimas consequências, em termos programáticos, a ideia de uma revolução social inexistente induz a importantes omissões ou menosprezos. Exatamente porque a abolição ocorreu de forma gradual e controlada pela oligarquia, ou seja, pela via da institucionalidade dos proprietários, a realidade impõe um conjunto de tarefas democráticas e antirracistas que o programa operário e socialista deve incorporar. Desde as “cotas”, as que o próprio Maestri se opõe[60], passando por reparações efetivas em termos de igualdade racial e social. Tarefas democráticas que, em plena época imperialista, somente uma revolução socialista, com o proletariado à cabeça dos demais setores explorados e oprimidos, poderá realizar.
Tradução: Diego Russo
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[1] MAESTRI, Mário. A colonização das Américas em debate. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/a-colonizacao-das-americas-em-debate/>, consultado em 20/05/24. Todas as referências a Maestri, salvo indicação contrária, remetem-se a este texto.
[2] NÚÑEZ, Ronald L. A Guerra contra o Paraguai em debate. São Paulo: Sundermann, 2021, pp. 27-77.
[3] FRANK, André G. Capitalismo y subdesarrollo en América Latina. México: Siglo XXI, 1970, pp. 3, 5, 10.
[4] Nahuel Moreno [1924-1987]: Dirigente e teórico trotskista argentino, fundador da atual Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI).
[5] MORENO, Nahuel [1948]. Cuatro tesis sobre la colonización española y portuguesa en América. Disponível em: <https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/01_nm.htm>, consultado em 21/05/2024.
[6] Ibidem.
[7] Quanto à dinâmica do processo, pode-se dizer que a análise de Moreno é próxima às conhecidas definições de Caio Prado Jr. e Fernando Novais.
[8] Ibidem. Salvo indicação em contrário, todos os destaques são nossos.
[9] MORENO, Nahuel [1975]. Método de interpretación de la historia argentina. Buenos Aires: El Socialista, 2012, pp. 31-32.
[10] PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000, pp. 20-21.
[11] MARX, Karl. O capital. Volume I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 960. Destacado no original.
[12] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich [1848]. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 41.
[13] MARX, Karl. O capital. Volume I…, op. cit., p. 988.
[14] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 57.
[15] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich [1848]. Manifesto Comunista…, op. cit., p. 41.
[16] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 80.
[17] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Materiales para la historia de América…, op. cit., p. 46.
[18] MARX, Karl. Teorias da Mais-valia. Volume II. São Paulo: Difel, 1983, p. 730.
[19] MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 684.
[20] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã…, op. cit., p. 57.
[21] Ibidem.
[22] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich [1848]. Manifesto Comunista…, op. cit., p. 41.
[23] MAESTRI, Mário. Em busca de um Brasil feudal perdido. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/em-busca-de-um-brasil-feudal-perdido/>, consultado em 11/06/2024.
[24] VAID, Dharv. 50 millones de personas, atrapadas en la esclavitud moderna. Disponível em: <https://www.dw.com/es/50-millones-de-personas-atrapadas-en-la-esclavitud-moderna/a-65831282>, consultado em 11/06/2024.
[25] MORENO, Nahuel [1948]. Cuatro tesis sobre la colonización…, op. cit.
[26] NOVACK, George. O desenvolvimento desigual e combinado na história. São Paulo: Editora Sundermann, 2008, p. 90.
[27] MORENO, Nahuel [1948]. Cuatro tesis sobre la colonización…, op. cit.
[28] Ibidem.
[29] GORENDER, Jacob [1978]. O escravismo colonial. 6ta ed. São Paulo: Expressão Popular-Perseu Abramo, 2016.
[30] MAESTRI, Mário. O escravismo colonial: A revolução Copernicana de Jacob Gorender. A Gênese, o Reconhecimento, a Deslegitimação. Cadernos IHU. Ano 3, n. 13, 2005, p. 9.
[31] CARR. E. H. O que é história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 24.
[32] FREIRE, Alipio; VENCESLAU, Paulo de Tarso. Jacob Gorender. Disponível em: <https://teoriaedebate.org.br/1990/07/01/jacob-gorender/>, consultado em 11/06/2024.
[33] Aparentemente, Maestri também lamenta a “destruição da URSS” estalinizada, dado que teria desencadeado a “vitória da maré contrarrevolucionária mundial dos anos 1990”.
[34] GORENDER, Jacob. Marxismo sem utopia. São Paulo: Ática, 1999, p. 9.
[35] Ibidem.
[36] Idem, p. 33.
[37] Idem, pp. 37-38.
[38] MAESTRI, Mário. Centenário do nascimento de Jacob Gorender. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/centenario-do-nascimento-de-jacob-gorender/>, consultado em 11/06/2024.
[39] NÚÑEZ, Ronald L. A Guerra contra o Paraguai…, op. cit., p.75.
[40] Idem, p.63.
[41] CARDOSO, Ciro F. Severo Martínez Peláez y carácter del régimen colonial. In: ASSADOURIAN, Carlos, et al. Modos de producción en América Latina. Córdoba: Cuadernos Pasado y Presente, 1974, p. 102.
[42] GORENDER, Jacob [1978]. O escravismo colonial…, op. cit., p. 22.
[43] GORENDER, Jacob [1981]. A burguesia brasileira. 3a ed. 2a reimp. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 7.
[44] Idem, p. 21.
[45] GORENDER, Jacob [1978]. O escravismo colonial. 3a ed. São Paulo: Ática, 1980, p. 54. Destacado no original.
[46] MARX, Karl [1859]. Contribución a la crítica de la economía política. Buenos Aires: Estudio, 1970, p. 210.
[47] Engels explicou que no século XVI houve um “novo surto” feudal em grande parte da Europa Oriental, com o objetivo de produzir lã e outras matérias-primas para desenvolvimento manufatureiro da Europa Ocidental. Assim, o servo viu reforçada a sua sujeição à terra pela força, para produzir em grande escala para o mercado ocidental. Esse processo seria um prenúncio do que ocorreria, de maneira ampliada, no Novo Mundo. Consultar: MAZZEO, Antônio. O escravismo colonial: modo de produção ou formação social? Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 6, n. 12, 1986, p. 211.
[48] MARX, Karl. Miseria de la filosofía. Disponível em: <https://www.marxists.org/espanol/m-e/1847/miseria/005.htm>, consultado em 29/05/2024.
[49] MARX, Karl. O capital. Volume I…, op. cit., p.988.
[50] GORENDER, Jacob [1981]. A burguesia brasileira…, op. cit., p. 21. Destacado no original.
[51] Ibidem.
[52] Idem, p. 22.
[53] Ibidem.
[54] TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 9.
[55] GORENDER, Jacob [1981]. A burguesia brasileira…, op. cit., p. 21.
[56] Idem, p. 23.
[57] Idem, p. 22.
[58] NÚÑEZ, Ronald L. 13 de mayo de 1888: una narrativa racista sobre la abolición de la esclavitud en Brasil. Disponível em: <https://www.abc.com.py/edicion-impresa/suplementos/cultural/2020/05/17/13-de-mayo-de-1888-una-narrativa-racista-sobre-la-abolicion-de-la-esclavitud-en-brasil/>, consultado em 11/06/2024.
[59] NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo: Publifolha, 2000, pp. 12-29.
[60] PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO. O Programa Racial do Capital e do Trabalho para a Sociedade Brasileira. Disponível em: <https://pcb.org.br/portal2/628>, consultado em 11/06/2024.
[1] Ronald León Núñez, sociólogo pela Universidad Nacional de Asunción (2009), mestre (2015) e doutor (2021) em História pela Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de A Guerra contra o Paraguai em debate (Sundermann, 2021). Membro do Comité Paraguayo de Ciencias Históricas (CPCH). Militante da Liga Internacional dos Trabalhadores-Quarta Internacional.