Praga, 1968
09/26/2024O esmagamento da revolução em Praga foi um sucesso militar com um enorme custo político. A brutalidade stalinista mais uma vez manchara a imagem do socialismo.
Por Ronald León Núñez
Entre os países do antigo bloco soviético, a Tchecoslováquia era um dos mais industrializados. Seu PIB per capita era 20% maior do que o da própria URSS[1]. Possuía uma classe operária com significativa tradição de luta. Durante a ocupação alemã, a resistência local havia eliminado Reinhard Heydrich, um dos arquitetos do genocídio nazista na Europa.
O Exército Vermelho ocupou o país no contexto da derrota do Terceiro Reich. O Partido Comunista da Tchecoslováquia (PCC) assumiu poder em 1948, instaurando um regime de partido único, subordinado a Moscou.
Na década de 1950, o stalinismo local consolidou-se por meio de expurgos, prisões, torturas, farsas judiciais etc.[2]. Um clima sufocante de terror permeava a sociedade. O controle rígido do PCC estendia-se muito além da política e da economia. A imprensa, a literatura, a pintura, a música, a ciência… nada escapava à censura do regime.
O descontentamento social aumentou quando, no início da década de 1960, a economia entrou em recessão. Isso potencializou a crise política. A burocracia, por sua vez, parecia imune às penúrias do povo. No contexto de crise económica, social e de um domínio policial insuportável, o PCC promulgou uma nova Constituição, ditada por Moscou, que declarava: “a construção do socialismo foi concluída (…)”.
Em 1967, o questionamento ao stalinismo intensificou-se. A União de Escritores da Tchecoslováquia alentou um amplo movimento, inicialmente liderado por intelectuais e estudantes, que criticava a política econômica e opunha-se à censura. O Literární Noviny, um semanário comunistapara escritores, publicou artigos sugerindo que a literatura fosse independente da doutrina do partido. O regime reafirmou que o controle da revista seria feito pelo Ministério da Cultura. Medidas desse tipo, contudo, não impediram que o clamor pela liberdade de expressão, de imprensa, de criação artística e de pesquisa científica continuasse a crescer.
Os estudantes protagonizaram passeatas por melhor educação e mais liberdades. Os protestos foram duramente reprimidos, mas a violência policial alimentou o movimento democrático. Logo surgiu a reivindicação por uma federação justa entre tchecos e eslovacos, negada pelos soviéticos[3]. Duas décadas de ditadura stalinista tornaram intolerável a subordinação do país à URSS. Observe-se que, assim como em Berlim, Polônia e Hungria, a questão nacional irrompeu com muita força na preparação da revolução política na Tchecoslováquia.
Por outro lado, a reivindicação por liberdade de organização sindical e partidária desafiava diretamente o monopólio político do PCC. O movimento democrático impactou na alta hierarquia do partido no poder. Ele agravou a divisão entre aqueles que admitiam a necessidade de certas reformas, no sentido de fazer concessões que pudessem dissipar o descontentamento, e os chamados “linha-dura”, que exigiam uma repressão redobrada para conter a crise antes que ela se tornasse incontrolável. Assim, surgiram as primeiras divisões no PCC.
Dubcek, o reformador tolerado
A pressão do movimento levou à demissão de Antonín Novotný, secretário-geral do PCC desde 1953, em janeiro de 1968. Ele foi sucedido por Alexander Dubcek, um líder da ala burocrática considerada “reformista”. Essa mudança foi inicialmente autorizada por Leonid Brezhnev, líder supremo da URSS desde 1964.
A ala de Alexander Dubcek não pretendia nenhuma revolução política. Por meio de concessões secundárias, buscava novas formas de diálogo com as massas fartas do totalitarismo russo no sentido de desmobilizá-las, não de incentivar o fim do regime de ocupação soviético. O objetivo não era acabar com o domínio político do PCC, mas devolver algum grau de credibilidade popular a esse partido, reciclar a imagem do governo para dissipar o descontentamento, mas sem chegar às últimas consequências. Em resumo, era uma facção disposta a renunciar aos seus anéis para não perder os dedos. Alexander Dubcek denominou essa política de “socialismo com um rosto humano”.
Em fevereiro de 1968, ele declarou que a missão do partido era “construir uma sociedade socialista avançada sobre bases econômicas sólidas…um socialismo que corresponda às tradições democráticas históricas da Tchecoslováquia, de acordo com a experiência de outros partidos comunistas…”[4], embora tenha deixado claro que a nova política tinha como objetivo “fortalecer o papel dirigente do partido de forma mais eficaz”.
Em 30 de março, Novotný perdeu o cargo de presidente para o general Ludvík Svoboda, um respeitado herói de guerra alinhado com os “reformistas”. Em abril, o PCC adotou o slogan “socialismo com rosto humano”. Assim, o governo Dubcek-Svoboda anunciou um Programa de Ação baseado em reformas democráticas e econômicas moderadas, mas que, no contexto da opressão existente, foi recebido com grandes expectativas pela população.
A censura foi abolida em 4 de março. Surgiram novos jornais. Houve um florescimento da expressão artística. Alguns debates sobre questões espinhosas tornaram-se públicos. A imprensa detalhou os crimes cometidos contra o país durante o governo de Stalin, a opressão nacional e criticou os privilégios dos apparatchik. O Programa de Ação previa uma abertura política controlada: voto secreto para eleger os dirigentes, liberdade de imprensa, liberdade de reunião, liberdade de expressão, liberdade de movimento, ênfase econômica na produção de bens de consumo, admissão do comércio direto com as potências ocidentais e uma transição de dez anos para um regime multipartidário. O novo governo avançou em direção a uma federação de duas repúblicas, a República Socialista Tcheca e a República Socialista Eslovaca. De fato, essa foi a única medida de Alexander Dubcek que sobreviveu à invasão soviética.
O Programa de Ação, embora tímido, espantou os conservadores do PCC. A sociedade, por sua vez, pressionou por uma aceleração das reformas democráticas. Os abusos foram divulgados e os antigos expurgos foram revisados. Entre outros, Slánský foi totalmente reabilitado em maio de 1968. A União dos Escritores nomeou uma comissão, chefiada pelo poeta Jaroslav Seifert, para investigar a perseguição aos intelectuais desde 1948. Não demorou muito para que surgissem publicações não partidárias, como o jornal sindical Prace.
Surgiram novos clubes políticos, culturais e artísticos. A ala da linha dura, alarmada, exigiu a reintrodução da censura. A ala de Dubcek insistiu em uma política moderada. No entanto, o novo governo nunca questionou a posição do PCC como dirigente supremo da sociedade. Em maio, foi anunciado que o 14º Congresso do PCC se reuniria em 9 de setembro. O conclave incorporaria o Programa de Ação ao estatuto do partido, elaboraria uma lei de federalização e elegeria um novo Comitê Central.
As reformas tinham ido além do que Brezhnev podia tolerar. Moscou denunciou o processo como “um desenvolvimento em direção ao capitalismo” e exigiu explicações de Dubcek. Em 23 de março, em uma reunião em Dresden, representantes da URSS, Hungria, Polônia, Bulgária e Alemanha Oriental criticaram duramente a delegação da Tchecoslováquia. Para os líderes do Pacto de Varsóvia, qualquer alusão à democratização colocava em dúvida o modelo soviético. Gomulka e János Kádár, ditadores da Polônia e da Hungria, estavam particularmente preocupados com a possibilidade de a liberdade de imprensa na Tchecoslováquia levar a um processo semelhante ao da, segundo eles, “contrarrevolução húngara” de 1956.
Uma nova reunião foi realizada entre 29 de julho e 1º de agosto. Brezhnev estava presente. Do outro lado da mesa estavam Dubcek e Svodoba. Os tchecoslovacos defenderam as reformas em andamento, mas reafirmaram sua lealdade a Moscou, sua participação no Pacto de Varsóvia e no COMECON[5]. Eles aceitaram o compromisso de conter possíveis tendências “antissocialistas”, impedir o ressurgimento do Partido Social-Democrata da Tchecoslováquia e aumentar o controle da imprensa. Brezhnev concordou relutantemente com esse acordo. Moscou prometeu retirar suas tropas da Tchecoslováquia, embora as mantivesse ao longo da fronteira, e autorizar o Congresso do PCC programado para setembro.
Contudo, o clima ainda estava instável. Em março, os estudantes, cansados de serem acusados de “restauradores do capitalismo”, publicaram uma Carta Aberta aos Operários. Eles denunciaram que a campanha de difamação pretendia separá-los da classe trabalhadora. Depois, foram feitos os primeiros contatos entre estudantes e operários nas fábricas, e a unidade operária-estudantil do movimento antiburocrático foi colocada em prática.
No final de junho, surgiu o manifesto Duas Mil Palavras, uma “proclamação aos operários, camponeses, funcionários, artistas, cientistas, técnicos, todos”[6], escrito pelo renomado jornalista e escritor Ludvík Vaculík. Basicamente, ele pressionava Alexander Dubcek para acelerar o prometido processo de reforma. O Manifesto foi uma crítica severa à degeneração burocrática do partido e do regime. Foi assinado por mais de 100.000 pessoas. No exterior, o movimento operário-estudantil do famoso Maio Francês apoiou sem reservas o processo de abertura da Tchecoslováquia.
O texto de Vaculík, é claro, tinha limitações. Ele não propunha a derrubada do PCC, mas a sua reforma. Em essência, tentava manter a esperança na possibilidade de regeneração interna do partido e, consequentemente, do regime. Nesse sentido, acabou expressando apoio político ao governo e à ala de Alexander Dubcek na disputa de facções no partido.
No entanto, a proclamação enfureceu Brezhnev em Moscou, que classificou o documento como um “ato contrarrevolucionário”. Na Tchecoslováquia, Alexander Dubcek, o Presidium do partido e o gabinete também denunciaram as Duas Mil Palavras, escancarando os limites de suas intenções reformistas.
No contexto desse clima de instabilidade, o Kremlin retirou seu apoio a Alexander Dubcek. Em 3 de agosto, Brezhnev, Ulbricht (República Democrática Alemã, RDA) e Gomulka reuniram-se em Bratislava e decidiram que o Programa de Ação era uma “plataforma política e organizacional da contrarrevolução”, deixando em aberto a possibilidade de uma invasão militar.
Soberania limitada
Finalmente, o Politburo do PCUS decidiu usar a força em 16 de agosto. Na noite de 20 para 21 de agosto, uma força combinada de quatro países do antigo Pacto de Varsóvia –União Soviética, Bulgária, Polônia e Hungria– invadiu a Tchecoslováquia[7] Em poucas horas, mais de 250.000 soldados e 2.000 tanques ocuparam a capital.
Alexander Dubcek defendeu a passividade, mas milhares de pessoas saíram às ruas em protesto. Alguns tentaram dialogar com os operadores dos tanques russos. Um contingente de soldados poloneses entrou e saiu do país porque as pessoas haviam mudado as placas das estradas.
Os tchecoslovacos pintaram os tanques soviéticos com suásticas, fazendo alusão à invasão nazista de 1938. Em 26 de agosto, a resistência publicou o decálogo de não cooperação com o invasor: “Não sei, não conheço, não direi, não tenho, não sei como fazer, não darei, não posso, não irei, não ensinarei, não farei”.
Nas paredes, havia pichações como “O circo soviético está de volta a Praga” ou “Lênin, levante-se, Brezhnev está louco!”
Todavia, apesar da resistência, a cidade foi tomada. O Congresso do partido foi realizado na clandestinidade, em uma fábrica nos arredores de Praga, custodiada por milícias operárias. Mais de 1.100 delegados repudiaram a ocupação soviética.
No primeiro dia da invasão, Dubcek, Svoboda e outros membros do gabinete foram presos e levados para Moscou. Sob forte pressão, eles capitularam um após o outro. Em 26 de agosto, assinaram o Protocolo de Moscou, que justificava a intervenção armada, restabelecia a censura, denunciava o 14º Congresso do PCC e suas resoluções, reafirmava a lealdade ao Pacto de Varsóvia, entre outros pontos. A Primavera de Praga havia terminado sob as lagartas dos tanques russos.
Houve manifestações corajosas contra a invasão em alguns países do Pacto de Varsóvia. Na Praça Vermelha de Moscou, oito manifestantes protestaram em 25 de agosto. Eles foram presos e enviados para o gulag. Uma delas, Natalia Gorbanevskaya, foi condenada ao confinamento forçado em uma clínica psiquiátrica especializada em receber os opositores mais perigosos. Em Varsóvia, Ryszard Siwiec ateou fogo a si mesmo em 8 de setembro para protestar contra a agressão à Tchecoslováquia. Em 16 de janeiro de 1969, Jan Palach, um estudante tcheco de 20 anos, ateou fogo em si mesmo em Praga pelo mesmo motivo. Em 25 de fevereiro, o estudante Jan Zajíc, de 18 anos, imolou-se na mesma cidade. Na RDA, protestos isolados foram rapidamente silenciados pela Stasi (polícia secreta da Alemanha Oriental).
Em 7 de novembro de 1968, uma multidão desafiou as tropas de ocupação e queimou a bandeira soviética em Praga. No dia 17 do mesmo mês, uma greve estudantil tomou a Universidade de Praga. Em 21 de agosto de 1969, no primeiro aniversário da invasão soviética, uma série de manifestações em várias cidades da Tchecoslováquia desafiou a proibição do governo. Pelo menos cinco jovens foram mortos durante a repressão. Foram os últimos suspiros da Primavera de Praga, que agonizava.
Normalização
Moscou manteve Alexander Dubcek no cargo por alguns meses, embora ele já fosse um cadáver político. Em abril de 1969, ele perdeu o cargo de secretário-geral para Gustáv Husák, um burocrata que governaria o país até 1989. Depois de alguns meses como embaixador na Turquia, Alexander Dubcek acabou como funcionário de um parque florestal.
O período de “normalização” havia começado. Todas as reformas democráticas de 1968 foram revertidas. As prisões ficaram cheias. Entre 1969 e 1971, mais de 500.000 membros do PCC foram expulsos. O terror stalinista foi totalmente restabelecido.
Brezhnev justificou a invasão da Tchecoslováquia enunciando o conceito de “soberania limitada”: “Quando há forças hostis ao socialismo e tentam mudar o desenvolvimento de qualquer país socialista para o capitalismo, elas tornam-se não apenas um problema do país em questão, mas um problema comum que diz respeito a todos os países comunistas”. Nasceu a doutrina Brezhnev[8] que, na realidade, resumia a atitude que a URSS havia adotado em relação às revoluções políticas em sua área de influência.
A propaganda soviética acusou as massas da Tchecoslováquia – como também as massas de Berlim e da Hungria antes delas – de promover a “restauração do capitalismo”. Fidel Castro alinhou-se a Moscou e apoiou a invasão: “O essencial para se aceitar ou não [a invasão russa] é se o campo socialista poderia ou não permitir o desenvolvimento de uma situação política que levasse ao desmembramento de um país socialista e à sua queda nos braços do imperialismo. Em nossa opinião, isso não é permitido e o campo socialista tem o direito de impedi-lo de uma forma ou de outra”[9].
Os saudosos do stalinismo, mais de meio século depois, repetem a mesma história. No entanto, uma análise rigorosa dos fatos não autoriza essa conclusão. O povo tchecoslovaco não lutou por uma restauração capitalista. Em nenhum momento, para usar a formulação de Trotsky, esteve em questão a “mudança das bases econômicas da sociedade”. Nem na Tchecoslováquia, nem em nenhum dos países onde eclodiram processos de revolução política antiburocrática. As massas, em um contexto de repressão implacável, lutaram à sua própria maneira para regenerar os partidos comunistas e os antigos Estados operários. O povo aspirava à democracia dos trabalhadores.
Do ponto de vista soviético, o esmagamento da revolução política em Praga foi um sucesso militar com um enorme custo político. A invasão aprofundou a crise em muitos partidos comunistas europeus, especialmente na Itália, França e Espanha, que acabariam se distanciando de Moscou para promover o chamado eurocomunismo, uma tendência claramente social-democrata.
A brutalidade stalinista mais uma vez manchou a imagem do socialismo aos olhos do mundo. As cenas dos tanques soviéticos reprimindo civis desarmados deram munição preciosa à propaganda imperialista, pronta para associar o totalitarismo stalinista ao comunismo. Contudo, foi a burocracia termidoriana, e não as massas tchecoslovacas, que facilitou as coisas para o movimento anticomunista. Esse é um elemento importante do balanço histórico.
Como disse o historiador Pierre Broué: “Certamente, a burguesia só pode se alegrar quando, para milhões de pessoas, a imagem do comunismo tem a face repulsiva do stalinismo, da ditadura burocrática, da força bruta e da repressão policial contra jovens e trabalhadores[10].
O inverno chegou a Praga. Entretanto, os ventos da liberdade voltariam a soprar na Europa Oriental. Em 1980, a revolução política antiburocrática com o maior peso operário da história eclodiria na Polônia.
Tradução: Marcos Margarido.
Publicado originalmente no jornal ABC e no site A Terra é redonda
Notas:
[1] TALPE, Jan. Los estados obreros del glacis. Discusión sobre el este europeo. São Paulo: Editora Lorca, 2019, p. 91 (https://amzn.to/48m8mcR).
[2] O mais famoso dos julgamentos fictícios ocorreu em 1952. Slánský, secretário do PCC, e o ministro das Relações Exteriores, Clementis, foram condenados à forca sob a acusação de “trotskismo-titoísmo-sionismo”. A única “prova”, como de costume, foram as confissões forçadas dos acusados.
[3] Embora a URSS oprimisse e explorasse o país e suas duas nacionalidades, Moscou era particularmente avessa à comunidade eslovaca, tradicionalmente mais hostil à dominação russa.
[4] Jaromir Navratíl. The Prague Spring, 1968. Central European University Press, 2006, pp. 52-54 (https://amzn.to/3PR6fGH).
[5] COMECON, Conselho de Ajuda Econômica Mútua. Fundado em 1949, era uma organização para cooperação econômica entre a URSS e seus Estados satélites.
[6] Manifesto Duas mil palavras, 27/06/1968.
[7] A Romênia, a Iugoslávia e a Albânia recusaram-se a participar da invasão. O comando soviético não apelou para as tropas da RDA para evitar reviver as lembranças da invasão nazista de 1938, embora isso fosse inevitável.
[8] Brezhnev confirmou essa doutrina em 13 de novembro de 1968, no 5º Congresso do Partido Comunista Polonês.
[9] Consultar: https://www.facebook.com/watch/?v=257351126301585.
[10] Consultar: https://www.laizquierdadiario.com/La-primavera-de-los-pueblos-comienza-en-Praga.