O mito do igualitarismo de José Gaspar Rodríguez de Francia: um debate com a esquerda
02/01/2024Qualquer falsificação da realidade, passada ou presente, é perniciosa para a classe trabalhadora em sua luta para melhorar suas condições materiais e culturais de existência.
Por Ronald León Núñez
A classe dominante possui plena consciência disso. Daí sua determinação de impor ao restante da sociedade –por meio de uma poderosa superestrutura– os valores e a visão de mundo que melhor servem à perpetuação de seus privilégios. Marx e Engels disseram em 1845: “As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes; ou seja, a classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante”[1].
Contudo, o estudo da história é baseado em fatos, não admite distorções e exige rigor científico. Não se pode combater mitos criando outros mitos.
Um mito que, infelizmente, foi adotado por aqueles que se autodenominam de “esquerda” e até mesmo marxistas, é o “igualitarismo social” que, supostamente, prevaleceu durante a ditadura do Dr. José Gaspar Rodríguez de Francia [1814-1840]. Quase 184 anos se passaram desde a morte do reverenciado e temido Karai Guasu[2], mas a mescla de realidade e ficção que envolve sua figura está mais viva do que nunca.
É notável que o apelido de “nivelador” e as análises que afirmam que no Paraguai “as classes sociais diluíram-se” entre 1813 e 1840 foram funcionais às duas correntes tradicionais de interpretação histórica –e que, a seu tempo, adquiriram status “oficial”: o liberalismo e o nacionalismo burguês, em todas as suas variantes–. A primeira apelou ao mito para desacreditar a figura do Dr. Francia; a segunda, para idolatrá-lo.
Entretanto, o que começou como exagero, em alguns casos degenerou em delírio. Sobretudo quando alguns autores afirmam que El Supremo não era apenas um “jacobino”, ou seja, um revolucionário radical e ilustrado, mas um líder que defendia um projeto “protosocialista”. Em outras palavras, Francia estaria pelo menos 35 anos à frente do próprio Manifesto Comunista.
Quanto mais cedo essas premissas forem descartadas pela esquerda, mais cedo estaremos em condições de compreender plenamente esse capítulo da história paraguaia e regional a partir de uma perspectiva materialista e dialética.
Francia não era igualitário nem as classes sociais “diluíram-se” durante seu governo. Não por qualquer razão moral ou outra razão essencialmente subjetiva. Nem por qualquer razão que diga respeito estritamente ao indivíduo chamado José Gaspar de Francia. Ele não era igualitário –e muito menos «protossocialista», se aceitarmos as definições mais absurdas[3]– porque o Ditador viveu e governou a nascente República paraguaia em uma época histórica em que nem uma coisa, nem outra estavam objetivamente postas.
É imperativo entender que o Dr. Francia, como indivíduo, foi parte importante de um processo histórico muito maior do que ele: a época das revoluções burguesas que, na América Latina, expressou-se como uma sequência continental de revoluções anticoloniais, ou seja, revoluções essencialmente políticas que, dependendo de cada caso, foram mais ou menos avançadas no terreno socioeconômico. O ditador paraguaio foi fruto desse contexto geral, e não o contrário.
É inegável que, por razões externas e internas fora de seu controle, o Dr. Francia foi muito mais longe do que aparentemente pretendia: nacionalização da terra; política de arrendamento a preços módicos para um setor do campesinato; monopólio estatal do comércio dos principais itens de exportação etc. Todas essas medidas foram certamente progressistas e muito avançadas em escala regional.
O próprio historiador brasileiro Francisco Doratioto, um insuspeito “francista”, escreve: “O Estado guarani era dono, em meados do século XIX, de quase 90% do território nacional e praticamente controlava as atividades econômicas, pois cerca de 80% do comércio interno e externo eram propriedade estatal”[4].
No entanto, os confiscos de parte da antiga e tradicional classe proprietária de terras e as consequentes nacionalizações não eliminaram a sociedade de classes nem a economia mercantil. Pelo contrário, opino que lançaram as bases para uma possível dinâmica de desenvolvimento mais acelerado do capitalismo[5]. E, como argumentou Lenin: “Não há igualitarismo na produção mercantil”[6].
Assim, a primeira premissa que apresento à leitora ou ao leitor é: o Dr. Francia tinha um projeto burguês –evidentemente, adequado às condições concretas do caso paraguaio, que herdou forças produtivas muito atrasadas do período colonial– de forma alguma “socialista”.
Tampouco “igualitário”. Justamente porque se tratava de um projeto que, em perspectiva e mesmo que levasse décadas, visava estabelecer a hegemonia do modo de produção capitalista.
Não podemos perder de vista que, por sua própria natureza de classe, nenhuma revolução burguesa jamais aspirou a uma democratização completa da sociedade. Muito menos almejou qualquer tipo de “igualitarismo”. Quando os revolucionários burgueses dos séculos XVIII e XIX, mesmo os mais radicais, lutaram por liberdade, foi pela liberdade para sua classe, para si e para os seus; nunca para as classes exploradas e os oprimidos.
Houve episódios excepcionais e relativamente curtos em que setores da pequena burguesia lideraram o processo, geralmente de forma mais ousada do que a grande burguesia, porém, mesmo nesses casos, fizeram-no a serviço de um projeto capitalista. Isso ocorreu porque, historicamente, a pequena burguesia não teve, não tem e não terá um papel econômica ou politicamente independente na luta de classes. Simplesmente porque ela não é uma classe fundamental na sociedade burguesa.
Por outro lado, algumas revoluções burguesas certamente deram origem a setores igualitários, isto é, grupos que não apenas exigiram direitos políticos plenos, mas também questionaram, de forma pioneira, a propriedade privada. Esse é o caso, por exemplo, dos diggers [a ala radical dos Levellers] durante a Revolução Inglesa do século XVII; dos indomáveis Raivosos [enragés] em meio à Revolução Francesa –que foram esmagados pelos próprios jacobinos–; ou o caso mais emblemático, o de François Babeuf, que em 1796 organizou a fracassada “Conspiração dos Iguais” contra o Diretório que assumiu o poder após a reação termidoriana. Babeuf teve o mérito de ter superado programaticamente diggers, jacobinos, hebertistas e enragés –todos defensores da igualdade em uma estrutura de pequenas propriedades– quando ousou defender a abolição da propriedade privada. Babeuf foi guilhotinado, mas suas ideias inspiraram as gerações futuras.
Pode-se argumentar, no entanto, que o Dr. Francia, embora de forma individual e utópica, teria defendido um programa semelhante. Contudo, isso também não é verdade. Nenhuma das ideias que observamos está presente nos escritos do ditador. Um estudo de sua correspondência sugere até mesmo que o Dr. Francia desprezava a população nativa.
Tampouco há qualquer igualitarismo em sua obra. A luta de Francia nunca foi contra a propriedade privada; quando ele a atacou, teve o cuidado de fazê-lo na medida necessária para enfraquecer o setor reacionário que se opunha à independência nacional. Nada mais.
Não apenas as classes sociais não foram “niveladas”, mas os indígenas “reduzidos” –cerca de 30% da população– continuaram segregados em suas aldeias ou reduções, controlados por “corregedores” brancos e sujeitos à obrigação de fornecer força de trabalho, geralmente gratuita, quando requisitada pelo Estado nacional.
Os afrodescendentes, que representavam cerca de 10% da população, permaneceram, em boa medida, escravizados[7]. Outra parte foi desterrada em um lugar inóspito chamado Tevego, no norte do país, uma “aldeia de negros” que serviria como “antemural” contra as temidas incursões dos índios guaicurus, que frequentemente atacavam a vila de Concepción.
De fato, os escravos confiscados dos espanhóis, dos portenhos, dos conspiradores locais ou da Igreja Católica não foram libertados, mas tornaram-se propriedade do Estado, que os obrigou a trabalhar em obras públicas e nas chamadas Estâncias da República. O próprio ditador –como mais tarde a família López– possuía escravos domésticos[8] e não hesitava em atacar seus inimigos, acusando-os de “mulatos”[9].
Por outro lado, durante o governo de Francia, eram comuns as “levas” de “vagabundos, preguiçosos ou desadaptados” para submetê-los a trabalhos forçados em obras públicas[10]. O trabalho gratuito foi estendido aos prisioneiros comuns e chegou até o exército.
Se a chamada esquerda não reconhece isso, se não o explica, está simplesmente sendo conivente com esses modos de exploração horrendos que ocorreram durante o século XIX. Isso não é gravíssimo?
Pior ainda, esse último problema –que faz parte do nocivo culto à personalidade dos heróis nacionais por parte de uma certa esquerda “patriótica”– abre um flanco completamente indefensável na polêmica com o liberalismo.
Como a esquerda nacionalista convenceu-se de que seu dever é lamentar a perda de um paraíso social inexistente –“sem pobres nem analfabetos”– no Paraguai de pré-guerra, acaba servindo de bandeja a não poucos liberais a justa e necessária crítica à escravidão negra e até mesmo à exploração dos indígenas. Um grande paradoxo!
É um fato inegável que o Dr. Francia, um advogado abastado, foi obrigado a atacar os interesses de um setor da oligarquia tradicional da ex-província para consolidar a independência nacional, especialmente aquele com mais conexões com o comércio exterior. Entretanto, essa é a contradição, não a essência do processo.
Sua disputa com Fulgencio Yegros, Fernando de la Mora ou Pedro Juan Caballero, entre outros expoentes da velha oligarquia local, não o transforma simplesmente em um “governo popular”, como sustenta o nacionalismo de esquerda. Isso simplesmente mostra a existência de uma luta entre setores burgueses pelo controle do Estado, na qual o Dr. Francia –apoiando-se em setores sociais proprietários não tradicionais– tinha um lado.
Por outro lado, é admissível reconhecer que, no século XIX, o setor burguês nacionalista e protecionista, personificado no El Supremo, era mais “progressista” –em um sentido capitalista– do que o setor antinacionalista e livre-cambista. No entanto, essa premissa não diminui o caráter burguês, nem de um, nem de outro.
A suposição de que o Dr. Francia governou em favor das classes exploradas é infundada.
Há autores que, sem rigor, falam de uma “ditadura plebeia”, na qual reinava um “indiscutível consenso social”[11]. O trabalho do historiador Richard Alan White, amplamente difundido nos círculos de esquerda, apresentou Francia como o guia de uma revolução social, “popular”, ou seja, baseada em um suposto “confronto de classes” entre a elite e o povo[12].
No entanto, os fatos não nos permitem definir o regime político do ditador paraguaio como “popular” ou “plebeu”. O processo liderado pelo Dr. Francia não contou com a participação política do povo comum. Nem os setores “plebeus” nem os “populares” participaram diretamente dos eventos, nem a revolução foi realizada em seu nome. No mesmo dia em que o poder espanhol foi derrubado no Paraguai, por meio de uma quartelada, um edito impôs um toque de recolher proibindo qualquer reunião de “três pessoas juntas, e nenhuma delas das classes de negros e pardos […]”[13].
El Supremo não surgiu como representante dos setores mais pobres e oprimidos –no caso, os negros escravizados e os índios reduzidos, cerca de 40% da população–, que não estavam mobilizados nem sofreram mudanças substanciais em suas vidas, mas de um setor de grandes e médios proprietários rurais que, embora não tivessem o poder político e o prestígio das “cem famílias” da ex-província, estavam ansiosos para ascender socialmente.
A transição de um Estado colonial controlado pela metrópole espanhola para um Estado independente foi, sem dúvida, uma mudança política revolucionária. Porém, essa revolução, ponto de partida do novo regime nacional, não alterou a estrutura social nem a vida cotidiana das classes trabalhadoras, marcada pela exploração de sua força de trabalho e por todos os tipos de penúrias.
A revolução paraguaia, como todas as outras na América Latina, não teve caráter social. Ela foi essencialmente política. Isso significa, acima de tudo, que não foi um conflito “entre classes” com interesses antagônicos, como sugere White, mas uma luta pelo poder político entre setores da mesma classe possuidora[14]. Esse entendimento teórico é fundamental.
Considerações finais
Para polemizar com o liberalismo e com a “história escrita pelos vencedores”, insisto, não é necessário recriar nenhum paraíso socioeconômico sediado no Paraguai anterior a 1864. Não há necessidade de exagerar nada ou de idolatrar os pais do capitalismo nacional. Isso é incompatível com o marxismo, uma doutrina científica que não reconhece um papel revolucionário a nenhum setor burguês, nem admite o culto à personalidade. Esse tipo de enfoque não é marxista, é stalinista.
Essa posição, além de não ter relação com o método científico do estudo da história, não contribui em nada para o debate com os apologistas da Tríplice Aliança.
A discussão substantiva com o liberalismo é mais profunda e complexa. Trata-se de definir se o período entre 1813 e 1870 foi progressista ou um retrocesso em uma escala histórica e global. Esse julgamento está, por sua vez, intrinsecamente ligado à relação passado-presente, ou seja, à visão de mundo e ao programa político subjacente às premissas e às teses centrais de cada linha de pensamento.
O fundamental, para a esquerda em sentido amplo, é demonstrar que, no contexto do século XIX, o projeto burguês de tornar a nação independente da metrópole ibérica e da submetrópole portenha, ou seja, de romper os laços coloniais, fortalecer o Estado nacional e, sobretudo, nacionalizar a terra, era essencialmente progressista e, portanto, constituía um modelo a ser defendido.
E o Dr. Francia, sem dúvida, desempenhou um papel central na implementação desse programa democrático e anticolonial. Ponto final. O resto é anacronismo ou simplesmente falsificação histórica.
Tradução: Marcos Margarido.
Publicado originalmente no Suplemento Cultural do jornal ABC Color. Versão revisada e ampliada.
[1] MARX, K.; ENGELS, F. [1846]: La ideología alemana. Barcelona: Grijalbo, 1974, p. 50.
[2] O ditador Francia, além de El Supremo, ficou conhecido como Karai Guasu, uma expressão em guarani que pode ser traduzida como “grande senhor”.
[3] CORONEL, Bernardo. Breve interpretación marxista de la historia paraguaya: 1537-2011. Assunção: Arandurã, 2011, p. 61.
[4] DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra. Nova história da Guerra do Paraguai, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 44.
[5] LEÓN NÚÑEZ, Ronald. A Guerra contra o Paraguai em debate. São Paulo: Sundermann, 2021, pp. 238-245.
[6] LENIN, V. I. [1907]: La cuestión agraria. Madri: Ayuso, 1975, p. 75.
[7] A população considerada negra e mulata representava 11% da população e quase 50% da cidade de Assunção no final do século XVIII. Consulte: TELESCA, Ignacio. La historiografía paraguaya y los afrodescendientes. Disponível em:<https://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/sursur/AFRICAN/10tele.pdf>. Acesso em: 29/01/2024.
[8] Arquivo Nacional de Assunção – Seção de História, doravante ANA-SH, v.242, n.9.
[9] ANA-SH, v.243, n.12.
[10] ANA-SH, v.229, n.9.
[11] MAESTRI, Mário. Paraguai: a República camponesa: 1810-1865. Porto Alegre: FCM Editora, 2015, pp. 114,124.
[12] WHITE, Richard Alan [1984]. La Primera Revolución Popular en América: Paraguay 1810-1840. 2. ed. Assunção: Carlos Schauman Editor, 1989, p. 115.
[13] VELILLA, M. (Org.). Autos de la Revolución del Paraguay del 15 de mayo de 1811: Archivo Nacional de Asunción, Sección Historia, vols. 213 A e B. Assunção: Servilibro, 2011, p. 28.
[14] LEÓN NÚÑEZ, Ronald. Entre lo nuevo y lo viejo: Reflexiones acerca del carácter de la independencia paraguaya en el contexto latinoamericano (1811-1840). Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, [S. l.], v. 74, p. 67-94, 2022.